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Efectivamente sem moralizar

Na Madeira, Caires era, à época, um dos mais ousados praticantes do Freestyle Classicism

1985 foi o ano em que o arquitecto Manuel Graça Dias, empenhado divulgador de um movimento que então alvoroçava a arquitectura portuguesa, decretou: o movimento pós-moderno é “um espaço infinito, com um princípio preciso (a morte do moderno) e sem fim visível”. O fim tornar-se-ia, todavia, bem visível no ano seguinte, por ocasião da I Exposição Nacional de Arquitectura, quando a “Escola do Porto” – que viria a dar origem a dois Pritzkers e à projecção além-fronteiras da arquitectura portuguesa – nela decidiu não participar. Nessa exposição marcou presença um Café-Concerto no Jardim Municipal do Funchal, considerado por Vieira de Almeida – eminente crítico que fez parte do júri – como “o mais notável de todo o lote”. Foi o primeiro projecto em que colaborei com o arquitecto João Francisco Caires, que o assinava em co-autoria com Duarte Cabral e Melo e Maria Manuel Godinho de Almeida.

Na Madeira, Caires era, à época, um dos mais ousados praticantes do Freestyle Classicism – um estilo que Charles Jencks, socorrendo-se da subversiva obra de arquitectos como Charles Moore, Venturi e Bofil, limpidamente caracterizara no início da década de 80. A atrevida e prolífica inventiva do autor madeirense não passaria desapercebida a José Manuel Fernandes, sagaz conhecedor da arquitectura insular que, ao visitar o Funchal em 85, não deixou de reparar nos expressivos contrastes “entre a densa e escura pedra vulcânica e as matérias contemporâneas”, que Caires manuseava com maestria nos muitos estabelecimentos que projectara no centro da cidade.

A eles dedicou a revista Arquitectura, em 1986, catorze páginas, nas quais se inclui um artigo do arquitecto Marques Miguel, que não compreendendo a obra do colega – em acto de contrito apego à cartilha moderna – preferiu moralizar: a Caires faltaria “mais tempo de reflexão” para atingir “o sublime da simplicidade e coerência do projecto” – afirmações que, vindas do autor do Centro Comercial Olimpo, nos fazem hoje sorrir... Infelizmente, tal como aconteceu a boa parte da obra de Marques Miguel, os estabelecimentos desenhados por Caires foram demolidos: o Posto de Turismo (1983), a Escola Hoteleira na Quinta Magnólia (1983), a Agência do Tota & Açores à R. da Carreira (1984), ou a singular Boutique 4 Estações na R. dos Capelistas (1984), entre tantas outras.

Irreparável perda! Assim desapareceram alguns dos mais notáveis testemunhos da arquitectura de uma época – noutros países classificados e protegidos. Desses experimentais anos 80, sobreviveram, todavia, dois belos exemplares de João Francisco Caires: o Hotel na Rua das Hortas (1987), em bom estado de conservação, e o Edifício Oudinot (1988) – este último, infelizmente, em versão freestyle domesticado: sério, cinzento, triste... Urge, efectivamente, sem moralizar, revisitar e restaurar o pós-moderno, recuperar-lhe as cores vivas e o brilho dos latões.