O que nos une é aquilo que nos distingue
Foi sobretudo através do recente concerto, no dia 19, da Orquestra Clássica da Madeira e da publicidade associada que os madeirenses puderam tomar conhecimento duma iniciativa cujo objetivo simbólico foi, e é, de estabelecer uma “ponte” entre a Presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (1.º semestre de 2021) e a Presidência francesa (1.º semestre de 2022). Foi, porque a iniciativa data de julho de 2018, altura da visita oficial de Emmanuel Macron a Lisboa e do acordo neste sentido com o primeiro-ministro português, António Costa. Foi, porque a epidemia fez com que estes planos fossem adiados até ao mês corrente. É, porque finalmente se vai desenvolver de fevereiro até, aproximadamente, ao final deste ano.
A Temporada Cruzada Portugal-França 2022 que, conforme já foi noticiado, envolve 200 projetos e cerca de 480 eventos, pretende realçar a proximidade e a amizade que unem os dois países, reforçados pela presença em França de uma substancial comunidade luso-descendente e por um número crescente de cidadãos franceses em Portugal.
Destacando a noção da Europa da Cultura, e através duma programação extensa que será realizada em 84 cidades francesas e 55 portuguesas e concretizada através de diversas exposições, das artes performativas (o cinema, o teatro, a música) e da banda desenhada, procura-se assumir um compromisso com os temas que unem os dois países e que ambos defendem na Europa do século XXI: a transição ecológica e solidária, focando o tema do oceano, a economia responsável e sustentável, a aposta nas energias renováveis, a igualdade entre mulheres e homens, o respeito pela diferença e os valores da inclusão.
A Temporada Cruzada arrancou no dia 12 de fevereiro em Paris, com um concerto pela Orquestra Gulbenkian, a pianista Maria João Pires e o maestro Ricardo Castro. No entanto, já no dia anterior, também em Paris, foi realizado o concerto com a mesma programação, solistas e maestro que o público madeirense teve a oportunidade de ouvir no dia 19 (nessa ocasião com a orquestra Philharmonie de Paris). Conforme consta da programação publicada no site do evento, a Madeira terá brevemente mais uma oportunidade de acolher uma iniciativa no âmbito do intercâmbio, desta vez através da Porta 33, que acolherá entre março e junho a exposição “Chasseurs de Tempêtes” (Caçadores de Tempestades). Através dessa exposição, quatro artistas franceses e portugueses pretendem sensibilizar para os problemas ambientais das regiões costeiras e dos habitats marinhos relacionados com o impacto da atividade humana sobre estas paisagens e fundos marinhos. Serão esculturas, instalações, vídeos e desenhos que abordarão várias preocupações contemporâneas, tais como questões ecológicas associadas à globalização, poluição, e a crise climática. No site da Temporada não aparecem mais do que essas duas únicas iniciativas na Madeira.
Curiosamente, nos Açores, serão desenvolvidos também (apenas?) dois projetos, ambos na Ponta Delgada: um intitulado “Twin Islands”, com duas residências artísticas simultâneas ao longo de um mês, entre fevereiro e março deste ano: enquanto a artista portuguesa ficará na Ilha de Ouessant, a francesa estará na Ilha de São Miguel. As artistas vão trabalhar em “espelho”, cada uma na sua ilha, procurando formas de comunicação à distância, e transmitindo o diálogo através dum projeto expositivo conjunto que vai assumir a escultura, o vídeo e a performance. Já a “Alta pressão”, a decorrer entre setembro e dezembro deste ano, envolve duas artistas a utilizar o oceano como uma fonte de exploração das complexas relações dos adolescentes com o clima e as grandes questões ecológicas. Será uma instalação visual e sonora composta por sons captados por oceanógrafos, música eletrónica, vozes humanas e instrumentos.
Sem dúvida que, nos dias que vivemos, projetos deste perfil reforçam a aposta em estudar, estreitar e promover laços culturais, sociais e, enfim, civilizacionais que nos aproximam uns aos outros e se debruçam sobre o nosso futuro comum colaborativo. Considerar que as especificidades e características autóctones representam contribuições para a riqueza da herança comum parece mais sensato e propício do que torná-las em fatores de exclusão e divisão.
Talvez seja digno de reflexão o facto de as duas regiões autónomas juntas estarem presentes com uns escassos 3.6% no que diz respeito às cidades portuguesas participantes e uns 2% quanto ao número de projetos no total. Seria impensável considerar isso uma ponderação do “peso” das culturas e sociedades regionais. De certeza que será sobretudo uma questão de informação atempada, iniciativa individual e coletiva, empreendimento e proatividade dos “stakeholders” naquilo que se pode identificar como “o nosso futuro”? Afinal, “eles” somos nós todos, não é?