Português testemunha choro dos jovens futebolistas distantes das famílias
Edgar Cardoso é diretor da formação do Shakhtar Donetsk
O português Edgar Cardoso, diretor da formação do Shakhtar Donetsk, viu jovens futebolistas do clube residentes em Kiev em lágrimas pela notória distância das suas famílias face ao agravamento da situação político-militar na Ucrânia.
"Há quem chore, há que esteja um bocadinho mais emocional. Se tocar no assunto no final do treino com algum atleta que está connosco em Kiev, mas tem família na zona de maior conflito, há alguma emoção", confidenciou à agência Lusa o dirigente, de 38 anos.
A tensão naquela região leste da Europa agravou-se na segunda-feira, com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, a reconhecer a independência dos territórios ucranianos separatistas pró-russos de Donetsk e Lugansk, ambos situados na região de Donbass.
"Sinto que há jogadores um bocadinho mais distraídos, menos motivados e com menos energia, o que é absolutamente normal, sabendo que pais, avós e tios podem estar numa zona um pouco mais conflituosa. De resto, não se toca praticamente no tema durante o dia e não posso dizer que tenha visto uma diferença na performance deles", ressalvou.
Vladimir Putin anunciou que as forças armadas russas poderão deslocar-se para aqueles territórios ucranianos em missão de "manutenção da paz", decisão foi condenada pela generalidade dos países ocidentais, que temiam há meses que a Rússia invadisse novamente a Ucrânia, após ter anexado a península ucraniana da Crimeia em 2014.
"A quantidade de vezes que eles conseguem estar com a família depende um bocado da distância a que estão e da capacidade económica para irem e voltar. Kiev está no centro da Ucrânia, um país gigantesco, que não tem uma rede de estradas tão favorável quanto isso. Em média, jogadores oriundos de Donetsk costumam ir a casa duas vezes por ano, no Natal e no verão. Pode acontecer que os pais com maiores possibilidades venham a Kiev para os ver, algo que não acontece com muita regularidade", notou Edgar Cardoso.
Nesse ano, começou a guerra no Donbass entre separatistas pró-russos, apoiados por Moscovo, e o exército ucraniano, que já originou mais de 14.000 mortos e 1,5 milhões de deslocados, de acordo com a ONU, deixando a cidade-sede do Shakhtar em alvoroço.
"Não se pode ir diretamente de Kiev até Donetsk pelo território ucraniano. Os jovens têm de ir até uma fronteira mais a norte com a Rússia, onde os pais estão à sua espera, uma vez que não podem passá-la por serem menores. Descem um pouco no mapa e entram novamente em Donetsk através de território russo. Se fosse em Portugal, a viagem iria demorar oito a 10 horas. Para estes miúdos, às vezes demora uns dois dias", comparou.
Forçado a separar-se da sua cidade e do moderno Donbass Arena, um dos recintos do Euro2012, no auge do conflito, o clube ucraniano mais bem-sucedido no século XXI refugiou-se em Lviv e Kharkiv, até se fixar desde 2019/20 na casa do rival Dínamo Kiev.
"Por acaso, em Kiev não sinto nenhuma animosidade relativamente ao Shakhtar. Durante um ano e meio, tive zero situações de estar a representar o clube e ter ouvido alguma provocação para mim ou para os meus atletas e treinadores. Daquilo que ouvi, e isto é anterior à minha vinda para cá, sei que em Lviv havia alguma animosidade por parte dos locais e não foi assim tão amigável a permanência do Shakhtar Donetsk por lá", contou.
O Donbass Arena, estreado em agosto de 2009, albergava quase 52.000 espetadores e custou mais de 500 milhões de euros, mas foi deixado ao abandono há oito anos e está parcialmente danificado por mísseis russos, frustrando a esperança de ser revitalizado.
"As pessoas do clube ainda acreditam e têm essa ilusão sempre presente. É um assunto que se fala bastante. Existe esse sonho de um dia poderem voltar, mas quer parecer-me que, com os acontecimentos mais recentes, a coisa se complicou mais", frisou Edgar Cardoso, que gere "quase 40 jogadores oriundos de todo o país", dos sub-13 e sub-19.
Sem nunca ter pisado Donetsk desde que se mudou para a Ucrânia, no verão de 2020, o líder das camadas jovens dos 'mineiros' "gostava e tem curiosidade" em visitar o recinto, dado o modo como os funcionários do Shakhtar "falam de Donbass com muito orgulho".
"O estádio é fantástico, bem como a sua zona envolvente. A fantástica academia que lá ficou era de topo mundial. Obviamente, tenho bastante curiosidade em lá ir, mas não vai ser possível, porque, se não justificar que tenho família em Donetsk, não posso lá entrar. Ainda é preciso tratar de documentos com alguma antecedência e não é fácil", advertiu.
As condições infraestruturais, logísticas e humanas resultam do investimento significado feito por de Rinat Akhmetov, dono de uma das maiores fortunas da Ucrânia e proprietário desde 1996 do Shakhtar Donetsk, que vai ameaçando a supremacia do Dínamo Kiev.
Desde então, os 'mineiros' conquistaram 12 campeonatos, 12 Taças da Ucrânia, nove Supertaças e a edição 2008/09 da Taça UEFA, passando quase de forma inevitável a ser tido como o maior símbolo futebolístico do conflito político-militar naquele país de leste.
Já o 'vizinho' Olimpik Donetsk, despromovido à II Liga na temporada passada, também já teve de se desdobrar entre Kiev e Sumy até se estabelecer em Chernihiv, enquanto o primodivisionário Zorya, de Lugansk, foi relocalizado para um estádio em Zaporizhzhia.