Tudo não passou de um susto
O início do tempo COVID parecia indicar a possibilidade de mudanças estruturais, nas pessoas e na natureza. Para além da célebre frase, “vamos ficar todos bem”, a crença de que o confronto com um vírus desconhecido, que arrastava a doença até à morte, podia agarrar qualquer um, criou um desejo partilhado de que talvez fosse possível mudar muita coisa, quem sabe, mudar o destino da humanidade.
E assim durante algum tempo este desejo cresceu. A vida social quase parou e a natureza reagiu. Alguns fenómenos naturais eram lidos como mensagens da tal mudança desejada. Os discursos e ações solidárias, o respeito pelo sofrimento de todos, a identificação à dor e perda do outro, pareciam indiciar uma mudança de atitude, de olhar, sobre a vida comunitária. A doença mental passou a ter outro enquadramento e compreensão. Era como se todos conseguissem perceber, alguns pela primeira vez, o significado da dor emocional e o medo real do confronto com a doença e com a morte. Surgiu uma nova cultura de ler a vida. Todos tinham que ter uma vida idêntica e por isso tornou-se mais fácil partilhar. Dar para receber.
Cada um dava o que tinha e sentia-se grato por estar vivo e saudável oferecendo aos outros os seus contributos. Tudo podia ser de todos.
Contudo, rapidamente o ciclo começou a alterar-se. As vacinas e a sua obrigatoriedade, assumida ou aconselhada/exigida, face às restrições, voltou a acender o pior da humanidade. Voltaram as diferenças, as zangas, o desrespeito. Agora cada um já tinha o direito de fazer o que queria independentemente do que isso significasse para os outros. Teorias sobre teorias, a favor e contra, tornaram-se armas de uma guerra sem sentido em nome de um bem precioso, a liberdade.
Liberdade e direitos que voltaram a falhar. Nem todos, mesmo os que queriam, tiveram o direito de optar. O poder politico e económico falou mais alto e tudo voltou à normalidade instituída, que afinal parece ser maioritariamente pacificadora. O mais importante passou a ser a liberdade de ser ou não vacinado e não o direito de toda a humanidade ter acesso, direito de escolha. Afinal à medida que o medo da morte se dissipou todo o resto pode voltar ao seu equilíbrio.
As crianças voltaram à escola de sempre, os adultos progressivamente regressaram às suas rotinas, a natureza continuou a ser naturalmente desrespeitada.
Tudo não passou de um susto, um sopro, onde poucos quiseram verdadeiramente aprender, mudar, corrigir. Iremos por isso continuar assim, iludidos com a segurança de um falso poder permitindo que a natureza nos ensine, à força, a insignificância das nossas certezas. Se a ciência tem de ser humilde, as pessoas ainda mais.