Crónicas

O frio pode ser saudade

E eu era gordinha, gostava de comer e de ler, ninguém conseguia distinguir naquela miúda uma jovem bonita, prendada e apta para o casamento

O frio era diferente, devia ser. Não me lembro de ter este incómodo nas mãos e nos pés e a casa não mudou de lugar. A percepção talvez seja outra com a idade. A minha mãe queixava-se muito, enchia-me de casacos de lã e vivia preocupada, davam-lhe medo as pneumonias e tinha sempre a história de alguém que se vira atrapalhado com a gripe. Nos anos 70 as pessoas tinham medo das doenças, dos rigores do tempo, de desastres naturais.

E por causa do medo a minha mãe vestia-me muito, com casaco e camisola interior, meias quentes e não me deixava ir à escola em dias de tempestade. A chuva podia levar-me pelo caminho, não era só imaginação que, a cada inverno, a ribeira levava a quota de mortos, numa conta que não poupava crianças. Lembro-me de ter passado o dia em que fiz 8 anos em casa, a ver o quintal e um céu cinzento. Nesse dia nem fomos a casa do meu avô.

Mas a casa não me parecia fria, não me lembro de ter frio à noite debaixo dos lençóis, debaixo três cobertores e da colcha. Sei que, às vezes, os azulejos da cozinha transpiravam quando se fazia o almoço e o tempo estava de sul e que, pela Festa, soprava uma aragem fresca do ribeiro, mas enquanto crescia, ali, no Laranjal, não havia lugar onde sentisse tão bem o abraço caloroso, aquele conforto de estar em casa. Era a minha casa, mas era mais.

Ou era o que deve ser uma casa. Nunca foi prefeita, teve sempre os defeitos de um prédio feito aos solavancos, conforme havia dinheiro e acabou por ficar mais ou menos desconjuntada. Os quartos tinham muitas portas, a cozinha ficava na passagem e tínhamos duas salas: uma de todos os dias; outra das visitas, mas nós não éramos uma família daqueles dos reclames ou do catálogo. A minha mãe era caótica, o meu pai às vezes passava da conta nos copos de vinho seco e o meu irmão nunca estava quieto e gostava de passar horas em cima das árvores.

E eu era gordinha, gostava de comer e de ler, ninguém conseguia distinguir naquela miúda uma jovem bonita, prendada e apta para o casamento. Não se via esse futuro nas minhas botas ortopédicas, nas meias pelo joelho e no cabelo escuro. Não, nenhum de nós era perfeito, dentro do padrão, assim como a nossa casa, encavalitada na curva, com jardim à frente que, tal como as pessoas que ali viviam, tinha momentos gloriosos e outros em que os canteiros de enchiam de erva.

Podia pingar no quarto de engomar ou levantar os tacos na sala e, ainda assim, aquele era o melhor lugar do mundo, quente e acolhedor. Agora parece-me mais fria, mas na verdade está é mais vazia. Falta-lhe o caos da minha mãe e o meu pai a tentar consertar o que fez ou o que deixou meio feito e por falta de dinheiro. A memória dos dois continua por aqui, a ligar-me às origens, aos anos 70, quando eu era uma miúda gordinha e o meu irmão vivia em cima das árvores.