Crónicas

O bom, o mau e o Presidente

Entretanto, continuamos sem Assembleia da República, sem Governo e sem Orçamento. O país segue dentro de momentos

A bizarria dos presidentes demissionários que se perpetuam no lugar virou moda. Depois de não encontrar qualquer utilidade na sua permanência como presidente, Rui Rio prepara-se para ficar a mandar no PSD até Julho. A saída, em câmara lenta, permite alguns episódios que explicam a calamidade eleitoral dos social-democratas. Depois do fim dos debates quinzenais com o Governo, por proposta de Rio, há esperança no regresso da discussão. Os partidos da oposição são, obviamente, a favor. O primeiro-ministro, com maioria absoluta, é a favor. O líder demissionário da oposição acha que não. O presidente do PSD, que perdeu 4 eleições seguidas, ia, se o deixassem, no bom caminho para perder a quinta.

O bom: A Arte Automóvel

Só existimos porque nos narramos. Esse é o mote que nos acompanha ao folhearmos as páginas do livro “A Arte Automóvel”, que junta a obra artística de Ricardo Veloza relacionada com os automóveis. Ao longo das 363 páginas, percorremos medalhas, que revelam pequenas esculturas, troféus, que perpetuam vitórias, cartazes, que relembram tempos idos, e esculturas, que se imortalizaram em bronze. Mais do que um livro, a obra assinada por Eduardo Jesus é uma homenagem. A Ricardo Veloza, pela singularidade da sua criação. Pela capacidade impressiva que o escultor madeirense teve, e tem, de produzir tantas e tão diferentes obras, de fazê-lo em tantos e tão diferentes materiais e suportes. Não há, em Portugal, registo de um legado, que junta a arte ao automóvel, tão vasto como o que imaginou Ricardo Veloza. Essa realização revela-nos um outro reconhecimento, menos óbvio, mas, porventura, mais impactante. “A Arte Automóvel” é uma homenagem à nossa identidade, à nossa memória. Uma homenagem às histórias que nos contaram, aos carros que por cá passaram e às pessoas que lhes deram vida. Essa tradição automóvel, que é tão madeirense, vive na obra de Ricardo Veloza. Por isso, o livro que celebra a arte automóvel não é só sobre automobilismo. É sobre nós. Só por isso, vale a leitura.

O mau: A votação dos emigrantes

O que começou bem, terminou terrivelmente mal. Em 2018, os partidos juntaram-se para rever a lei eleitoral e permitir o recenseamento automático a quem tinha um cartão de cidadão válido. No círculo da Europa, essa alteração permitiu que 245 mil eleitores, em 2014, se multiplicassem para mais de 1,4 milhões em 2021. Para além do milagre da multiplicação de eleitores, a nova lei passou a permitir o voto por via postal - desde que acompanhado por cópia do cartão de cidadão. É aqui que começa o problema. Os mesmos partidos que, em 2018, legislaram pela exigência do cartão de cidadão, em 2021 juntaram-se para um arranjinho que o dispensava. Mas a anedota em que se tornou o voto dos emigrantes tem mais protagonistas. No dia da eleição, em todas as mesas com votos irregulares, estavam presentes membros da Comissão Nacional de Eleições e do Ministério da Administração Interna a controlar a votação. Todos participaram numa farsa eleitoral que parece saída de um filme de terror. Tudo o resto é um pormenor, perante tamanha indignidade eleitoral. Por um lado, é inacreditável que os partidos tenham conspirado para violar uma lei aprovada pelos próprios. Por outro, é ainda mais inconcebível que, nos últimos 4 anos, não se tenha conseguido rever uma lei eleitoral absolutamente desajustada aos tempos em que vivemos. Trocou-se a revisão da lei pelo conluio eleitoral. Restou-nos, felizmente, o bom senso do Tribunal Constitucional e a lembrança de que a lei não se pode suspender nos bastidores partidários. Entretanto, continuamos sem Assembleia da República, sem Governo e sem Orçamento. O país segue dentro de momentos.

O Presidente: Marcelo Rebelo de Sousa

Estamos cercados. O PS governa a maioria das câmaras municipais, domina a maioria das juntas de freguesia e goza de uma maioria absoluta na Assembleia da República. Perante o cerco socialista ao país, resta-nos o Presidente da República. Mas se a política mudou depois das últimas eleições, Marcelo também terá de acompanhar a mudança. Agora não nos basta o Presidente dos afetos, dos beijinhos, das selfies e da proclamada proximidade. Marcelo sabe disso. Sabe que perdeu poder político perante um governo absoluto, mas ganhou responsabilidade fiscalizadora. É no resultado dessa equação política que Marcelo joga o sentido do seu segundo mandato. Portugal precisa de um Presidente rigoroso, atento, disponível para bater o pé à maioria que se agiganta perante o país. Essa disponibilidade presidencial é ainda mais premente em relação à Madeira e aos Açores. Isso significa que a sua palavra terá de ser poupada, usada com parcimónia, e não desbaratada em comentários de circunstância que pouco fazem para além de banalizar a intervenção de Marcelo. Não se trata de pedir que o Presidente governe ou que bloqueie a governação. Não pode, nem deve fazê-lo. De Marcelo, os portugueses esperam vigilância aos atropelos e aos abusos que se insinuam nas maiorias que se bastam a si próprias. O recente arraso do subsídio de mobilidade de madeirenses e açorianos é um bom exemplo disso. Todos sabemos o que esperar do Presidente da República. Resta saber se Marcelo está disponível para sê-lo.