Crónicas

A arte de cultivar a indiferença política

Esta semana, a obsessão alimentada pela comunicação social do nosso País andou em torno da eleição para uma das vice-presidências da Assembleia da República

Numa entrevista datada de 2010, Fernando Savater relata que foi contactado para comentar uma sondagem, feita por uma rádio espanhola, em que era posta a hipótese de uma pessoa muito mediática (nomeadamente pelo facto de dizer os maiores disparates) ser amplamente votada para ocupar o cargo de primeira-ministra. O filósofo contrapôs o pedido de comentário com uma pergunta «Vocês acreditariam que os mesmos espanhóis votariam nela para treinadora da seleção nacional?». A resposta que obteve é exemplar: que não, que o lugar de treinador da seleção é um cargo demasiado sério para ser tratado daquela forma. Conclui Savater que «quando falamos de coisas sérias falamos de futebol, e quando falamos de política tudo é possível. Este tipo de degradação do discurso é muito grave.»

Lembrei-me deste episódio a propósito do que temos assistido ao longo dos anos também em Portugal: a desvalorização da dimensão política como se fosse menor, como se a participação nos assuntos públicos que dizem respeito ao bem-estar da comunidade não fosse determinante. E, como em Espanha, por cá também nos perdemos na «polémica do dia» ou «o ar do tempo», parafraseando o jornalista Miguel Carvalho.

Esta semana, a obsessão alimentada pela comunicação social do nosso País andou em torno da eleição para uma das vice-presidências da Assembleia da República. O fait-divers engoliu largos minutos dos telejornais por vários dias e em vários canais televisivos, originou horas de comentários em horário nobre, deu pano para mangas para vários comentadores encherem colunas de carateres sobre o assunto. Ouvi, até à exaustão, que o assunto fazia parte da «agenda política». Mas a agenda de quem? Por que razão foi este assunto eleito como sendo central na «agenda política»? Quem determinou que a especulação (até à náusea) sobre uma votação que ainda não aconteceu e que não é determinante para o País está no centro da «agenda política» nacional?

Mas mais grave foi o que se passou com a votação das nossas comunidades emigradas, nomeadamente em relação à votação do círculo da Europa.

Cerca de 400 mil pessoas residentes no estrangeiro votaram nas eleições legislativas, muitas delas com grandes dificuldades para exercerem o seu direito e dever de voto. A lei determina que seja incluído no envelope da votação uma cópia do documento de identificação, ainda que o/a eleitor/a esteja devidamente identificada pela Administração Eleitoral, através dos consulados. Acontece que muitas pessoas, não estando cientes desta questão, enviaram os seus envelopes sem a cópia do seu documento de identificação.

Numa reunião prévia entre os vários partidos e a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna foi acordado que, para não se perder as votações – e tendo em conta que o documento de identificação, neste caso, não é determinante para uma rigorosa identificação do cidadão eleitor – todos os votos seriam contabilizados. Esta decisão consta da ata da reunião, obviamente validada pelos representantes dos partidos. Acontece que depois de se iniciar a contagem, o PSD deu o dito pelo não dito e contestou essa contabilização. A mesa de apuramento geral do círculo da Europa aceitou a queixa e anulou 80% dos votos daquele círculo: cerca de 157.205 votos foram considerados nulos, na medida em que já não era possível distinguir quais os que tinham sido acompanhados pela cópia do documento de identificação em cerca de 20 mesas de voto. Numa das eleições mais participadas em termos de votação das pessoas que se encontram no estrangeiro, e dando o dito por não dito, o PSD provocou a anulação de mais de 157 mil votos porque achou que isso lhe conviria, defraudando a vontade expressa daqueles eleitores em exercerem o seu direito de voto em condições geralmente muito difíceis – e, em última análise, uma absoluta falta de respeito pelo processo democrático desde que tal lhe seja conveniente. Tenho para mim que as comunidades portuguesas no estrangeiro, nomeadamente do círculo da Europa, não esquecerão esta falta de lisura do PSD.

Estes lamentáveis episódios, somados a outros tantos de natureza idêntica, remetem-me para o filósofo Daniel Inherarity que lembra que a maior ameaça que enfrentamos, enquanto comunidade, reside nos agentes económicos, da comunicação social e, claro, nos agentes políticos que, ainda que por razões diferentes, estão interessados em que a política «não funcione bem ou não funcione em absoluto», ou, pelo menos, que não funcione bem para todos.

A política é-nos inevitável enquanto nos organizarmos em comunidades, pelo que merece o nosso empenho no zelo dos mecanismos democráticos para além de agendas mediáticas, económicas e políticas que procuram que pareça uma questão menor para a maioria. Por isso, é absolutamente fundamental que combatamos esta vontade (de uns poucos) de desvalorizar a política através do incitamento à indiferença política (de muitos). Aí perderemos irremediavelmente os critérios que uma política orientada por princípios democráticos procura conquistar: justiça, igualdade e legitimidade para todos e não apenas para alguns.

A fechar…

É de futuro que vos quero falar – de um processo inverso ao que dá título a este texto. O PS-Madeira está em processo de escolha da nova liderança, com eleições agendadas para o próximo dia 19 de fevereiro. Hoje será apresentada a moção global do candidato que considero a pessoa indicada para conduzir os destinos da Região. A apresentação da Moção Global «Pela Madeira, competência e compromisso», assinada por Sérgio Gonçalves, acontece no Fórum Machico, a partir das 10:00, e é aberta a quem quiser conhecer melhor o projeto político que está a ser desenhado para 2023. Sejamos agentes da arte de cultivar uma resposta verdadeiramente democrática – uma política de todos e para todos.