Crónicas

O bom, o mau e o velório

As pessoas em situação de sem-abrigo são a face mais visível de um problema complexo

O inofensivo relatório nacional das provas de aferição de 2022 virou monumento aos embustes políticos. Após cuidada maquilhagem, o relatório concluiu que os alunos portugueses tiveram melhores resultados nas provas de 2022, face ao registado em 2019, ou seja, antes da pandemia. A ânsia de transformar tudo numa conquista política permitiu uma conclusão curiosa. O resultado de quase três anos de ensino fortemente condicionado foi positivo. Somos o único país do mundo onde se aprende mais com escolas fechadas do que com escolas abertas.

O bom: Diana Freitas – Prémio + Valor Madeira

O reconhecimento ao trabalho da Diana, chegou no momento em que as pessoas em situação de sem-abrigo são a face mais visível de um problema complexo e repetidamente mal-entendido. A coincidência entre o prémio e a atualidade do trabalho esconde os anos de dedicação e esforço, por parte da autora, em trazê-lo à luz do dia. Há anos que oiço a Diana a falar deste trabalho, só ultrapassados pelos anos de intervenção, na rua, junto dos que mais precisam. Este documento, naturalmente teórico, fez-se de muito anos de prática. Esse conhecimento da realidade, que a Diana tem, não se fabrica, nem se ganha em gabinetes confortavelmente afastados da crueza da rua. Por isso, o diagnóstico apresentado tem tanto de inquietante como de esperançoso. Como escreve a Diana, mais de metade dos inquiridos têm 5 ou mais anos de rua, mantendo-se nessa situação devido a problemas aditivos e problemas familiares. Não se chega à situação de sem-abrigo como resultado de um processo único, mas sim ao fim de um percurso contínuo de degradação pessoal e desamparo familiar. É aí que as equipas de rua, multidisciplinares por natureza, têm uma intervenção decisiva. Não só pela proximidade ao problema, mas pela capacidade de desenhar soluções específicas para cada situação, tantas vezes com risco pessoal e sempre com profundo desgaste físico e emocional. Haja coragem, também política, para não deixar que este trabalho da Diana se fique só pelo merecido prémio.

O mau: Revisão Constitucional

Dezassete anos depois, à custa da castração química e de outros devaneios de André Ventura, a Constituição terá uma revisão. O que se pensou, alvitrado por Marcelo Rebelo de Sousa, que seria uma revisão minimalista, transformou-se na apresentação de 8 projetos de revisão constitucional que versam sobre temas tão díspares como a prisão perpétua e a redução da idade mínima para votar. Nem a autonomia regional, normalmente tema menor destas iniciativas, escapa ao ímpeto revisionista. Há três notas importantes a esse propósito. A primeira é de que, à exceção do Partido Socialista, todos os partidos assumiram a necessidade de repensar um modelo autonómico com mais de 40 anos. Concordando-se, ou não, com a visão de cada partido, a mera discussão sobre o enquadramento da Madeira e dos Açores no Estado é muito positiva e só torna ainda mais inconcebível a ausência do PS desse debate. A segunda nota é pela aparente unanimidade em torno da extinção do bafiento cargo de Representante da República. O PSD extingue o cargo mas, de forma absolutamente incompreensível, substitui-o por um mandatário. O Bloco de Esquerda acompanha a extinção do Representante, mas substitui-o por um inusitado Provedor da Autonomia. A inocência da designação esconde um pormenor perverso. O Provedor, tal como o Representante, continua a representar o Estado na Região, mas é promovido a nosso órgão de governo próprio. Uma autêntica aberração constitucional. Na verdade, apenas a Iniciativa Liberal propõe a extinção do cargo sem qualquer truque na manga. Pela clareza e coragem, merecem reconhecimento. A nota final é sobre o que não está em nenhum projeto de revisão. Sobre o sistema fiscal próprio ou sobre instrumentos de atração de investimento para as Regiões, tal como o Centro Internacional de Negócios, nem uma linha.

O velório: Estados Gerais do PS

Os Estados Gerais do PS Madeira tornaram-se verdadeiros velórios, por onde se arrastam figuras caídas da nomenclatura socialista nacional que dali pronunciam, para gáudio da elite socialista local, eloquentes generalidades tais como “pessoas mais qualificadas têm mais condições para aceder a empregos de qualidade”. Entre um ex-ministro, um ex-líder parlamentar e um ex-candidato a secretário das finanças, pouco ou nada restou do evento político socialista, a não ser a repetida incoerência de prometer a redução fiscal na Região para de seguida defender, e durante largos anos aplicar, a derrama municipal no Funchal. Não se trata, no entanto, de simples incoerência. Há nestas iniciativas socialistas uma auto-suficiência preocupante, simbólica de um partido que parece cada vez mais debruçado sobre si mesmo, incapaz de falar para além do seu círculo mais próximo. O aquartelamento socialista revela, uma vez mais, a inusitada disponibilidade do partido para encaixar-se na narrativa que os seus adversários políticos repetem à exaustão. O PS Madeira, acusado de ser uma filial do Largo do Rato e de estar ao serviço dos socialistas de lá, não só se disponibiliza para promover figuras do PS nacional como assume, repetidamente, a defesa incansável de medidas tomadas pelo governo de António Costa. Se juntarmos a esse erro estratégico, a dificuldade do atual líder em marcar a agenda mediática, o velório promete não ficar apenas pelos Estados Gerais.