A arte de viver no caos
O talento, arte da minha mãe era a capacidade de se orientar no caos e de o fazer todos os dias
Há uma espécie de entulho dentro das minhas carteiras e gavetas, tralha que nunca vai para o lixo e nem eu sei bem a razão. São talões de compras, contas antigas, envelopes vazios e dobrados em dois que vão ficando com a ideia de que um dia vou arrumar. É que, como todas as pessoas desorganizadas, alimento o sonho de catalogar a papelada e os livros tal e qual como num arquivo ou numa biblioteca pública.
É uma quimera, uma miragem e uma herança, um defeito genético que me ficou da minha mãe. A maioria tem lembranças de uma mãe meticulosa, capaz de fazer o almoço e o jantar, passar a ferro, dobrar roupa e manter a casa arrumada. Eu não. O talento, a arte da minha mãe era a capacidade de se orientar no caos e de o fazer todos os dias, mesmo quando dava a impressão de que seria aquele o dia em tudo iria colapsar de forma definitiva.
O almoço aparecia feito, ainda que fossem frequentes os desastres. O arroz queimava, mas a minha mãe, sempre a correr contra o relógio e com pressa no bordado, culpava-nos, que éramos incapazes até para desligar o fogão. Muitas vezes sentia-se só naquela imensa desordem, faltava-lhe ajuda, tempo e paciência. A não ser pela Festa, quando se fazia às limpezas como se fosse para a guerra. E, então, o que era confuso ficava ainda pior.
Um furacão virava a casa do Laranjal ao contrário. Os móveis mudavam de lugar, despejavam-se as gavetas para as colocar ao sol em cima do terraço, abriam-se as almofadas e estendia-se a lã num lençol no meio do quintal. Sem critério, tudo acontecia em simultâneo. A loiça e copos de cristal dividiam as mesas com a roupa e os candeeiros, enquanto a minha mãe limpava as vidraças e as portas e dava cera no chão e ia, ao fim do dia, a cantar a Nossa Senhora nas missas do parto da Visitação.
A Festa era a Festa, acontecia uma vez por ano e, embora a desorientasse o que lhe faltava fazer antes do dia 25 de Dezembro, a minha mãe vivia como gostava. Limpava, semeava o trigo das searas para a Menino Jesus, cuidava dos sapatinhos, ia às compras à cidade e, por fim, quando tudo parecia arruinado, montava um presépio e uma árvore. E, todos os anos, quando acordava na manhã de Natal, a nossa casa brilhava, cheirava a ananás, a tangerinas e a bolos acabados de fazer.
E era quando me parecia certo, seguro que tudo iria acontecer como antes, nos outros natais, com um almoço só nosso. O meu pai, a minha mãe, o meu irmão e eu, ali todos à mesa sem pressa para ir para escola ou para trabalhar. Haveria pudim e gelatina mais uma salada de fruta com anona e goiaba de sobremesa. O meu pai acabaria a dormir no sofá depois, enquanto víamos a sessão da tarde. E o sorriso não haveria de desaparecer na cara da minha mãe, era sempre um daqueles grandes, daqueles que apareciam apenas quando estava mesmo feliz.