Um ponto de partida
Parece que tudo se ergue para esgotar-se no Natal. Tudo é feito e tudo é preparado para esta quadra, que é bonita e colorida. Da gastronomia típica, em grande abundância, à compra de presentes, à arrumação e decoração das casas, à partilha de conteúdos nas redes sociais, aos jantares de trabalho, etc. Faz tudo parte da Festa, repartida em actos rotineiros que se repetem em catadupa, anualmente. Muitos, todavia, ficam ao largo.
Frei Bento Domingues, uma das vozes mais livres da Igreja portuguesa que nos dá uma entrevista nas páginas seguintes, diz que no meio desta azáfama “de tanto falar do que falta fazer nem sequer olhamos para o que muitas pessoas estão a realizar”. É verdade. Há uns tantos, milhares, que oferecem o seu tempo – gratuitamente – aos outros. Aos doentes, especialmente os que não têm família e estão numa cama do hospital, aos idosos a quem já não se dá utilidade, aos abandonados e sem-abrigo, aos que sofrem, massacrados por guerras estúpidas e inúteis. Essa cidadania participativa e não assistencialista, como gosta tanto os governos de pôr em prática (veja-se a cultura da esmola promovida através de cheques pontuais emitidos no Terreiro do Paço para mitigar as consequências da inflação elevada) é de louvar e vai muito além do espírito natalício, de dar sem querer em troca, não se limitando à oferta do cabaz para a consoada.
Que este Natal seja mais do que um conjunto de rotinas ordenadas. Antes um ponto de partida e de mudança, inspirado naqueles que se voluntariam para dar. Que seja pelo reconhecimento pleno dos direitos das minorias e das mulheres. Sim, da maioria das mulheres que estão num patamar inferior em termos de reconhecimento profissional e de remuneração. Pela libertação dos oprimidos e explorados. Pelas crianças que sofrem com a falta de alimentação e habitação condignas. Pelos jovens sem igualdade de oportunidades, numa sociedade que continua a não permear o mérito, mas a cunha. Pelos trabalhadores honestos que não ganham para ter uma vida com a dignidade desejada e merecida.
E porque estamos numa terra de grande tradição católica que vive fervorosamente esta quadra, veja-se o sentido e o alcance desta frase:
“S. Francisco, provocado pelas narrativas dos Evangelhos da infância, descobriu, no nascimento de Jesus num curral, a imagem que precisava para realizar a ordem divina que tinha recebido: vai e reconstrói a minha Igreja”, uma igreja despida da dominação económica, política e religiosa.
Esta “provocação do Natal”, como escreveu há dias Frei Bento no Público, é também um ponto de partida e de reflexão, numa época em que se usa o Natal para aproveitamento político. Veja-se a correria desenfreada de governantes, autarcas e deputados às missas do parto e a publicidade dispensável que disso fazem nas redes sociais. A Igreja como instrumento de propaganda é manifestamente dispensável. Como também o é se não abrir as janelas ao mundo, com tudo o que isso acarreta.