Crónicas

Feliz Natal

E este Natal volto a casa, levo o Menino Jesus e as memórias, onde estamos todos, os vivos e os mortos

A miúda do Laranjal nunca me deixa, é a minha história e, este ano, aquela rapariguinha tímida e gorducha está de volta a casa e leva o Menino Jesus. Tirei-o de lá há muitos anos, quando me mudei, quis levar um pedaço do Natal, do que tinha sido a Festa lá por cima e meti no mesmo saco das fotografias da minha mãe. Foi como trazer, assim guardadas dentro de uma caixa de sapatos, as minhas memórias mais felizes.

Embora soubesse da impossibilidade de capturar o tempo, não troquei o vestido ao menino, é o mesmo de há 30 anos e foi a minha mãe que o fez. E lembrar-me disso é recuar até 1992 e perceber que esse talvez tenha sido um dos últimos em que fomos mesmo felizes. O meu pai fez um presépio do chão até ao tecto e eu fui às compras com a minha mãe, escolhemos saias, casacos e sapatos, roupa que se pudesse vestir na missa do Galo.

A minha tia Teresa ajudou nas limpezas para me tirar o peso, pobrezinha que vinha de férias da universidade e devia aproveitar. E ainda me deu cinco contos que juntei aos outros das outras tias e todas dobraram as atenções e cuidados. A tia Alice fez-me um bolo e a tia Conceição duplicou o que me mandava todos os meses para Lisboa. Sei que ainda fui com o meu irmão escolher berloques e presentes para a família. A cidade era outra, nós também.

O meu irmão era jornalista e haveria de publicar poesia, um dia, lá mais à frente; eu tinha o futuro como uma folha em branco e sei que falámos disso nesse Natal, assim numa espécie de trégua e antes de sermos tomados pelo espírito que todos os anos entrava pela casa do Laranjal adentro. E chegava com a desordem da minha mãe, com o meu pai a dormir no sofá, a matar o cansaço e a curar os copos a mais.

Também fazia parte o circo, a sessão da tarde e o tédio que nos dava para beber licores com a tampa das garrafas antes do dia terminar à volta da mesa, no quarto da televisão da casa das minhas tias. Lembro-me que cabíamos todos e que víamos as notícias com imagens das festas noutros lugares do Mundo. A minha mãe dizia sempre que não tinham muita graça, não era como o nosso. O nosso era ali, a comer sandes de galinha e canja, numa sala atarracada com mobília barata e loiça da fábrica de Sacavém.

Eu não sabia ainda que o brilho daquela sala e calor da casa do Laranjal não estava nas paredes, nas cadeiras ou nos armários, mas nas pessoas que, naquele Natal de 1992, me pareceram eternas. O futuro seria muitas coisas, teria muitas possibilidades e, em todas, eles estariam lá como os via naquele instante: homens e mulheres de meia idade, já grisalhos e capazes do mesmo carinho.

E este Natal volto a casa, levo o Menino Jesus e as memórias, onde estamos todos, os vivos e os mortos.

Boas Festas