Crónicas

O espírito

Pouco importava que tudo estivesse pronto apenas na véspera de Festa

Se me tivessem dito aos 16 anos, teria rido e pensado que, de facto, nunca ia acontecer. Não seria possível. A minha mãe e eu tínhamos feitios diferentes para, um dia, estar a escrever este texto a reconhecer que sim, sou cada vez mais parecida com ela e dou por mim a dizer coisas como “ai que este ano não me lembra à Festa”. E todos os anos faço tal e qual como a dona Celina, quase a vejo sentada na cadeira de vimes a tentar aviar o trabalho para a casa de bordados na semana antes do Natal.

Eu não tenho pressa para o bordado, mas tenho prazos e reportagens e contratempos que se intrometem no espírito de Natal. Ou há trabalho logo a seguir ou a poncha vai pesar depois, quando for preciso levantar cedo. Os meus planos – para fazer bolos, montar o presépio e meter o Menino Jesus em cima da escadinha com tangerinas e pêros – tendem a ser atropelados pela realidade.

Ou se corre para a reportagem ou se assume que, tal e qual como na casa do Laranjal, a Festa vai acontecer tarde, depois de se passar por cima de arrumações, limpezas e cozinhados. E nisso sou a minha mãe, nem preciso de puxar pela memória. Sou capaz de a ver a subir os degraus do beco para ir às missas do parto e de a ouvir cantar os versos das ‘Nuvens Piedosas” numa paróquia onde, nesse tempo, apenas umas quantas almas devotas cumpriam a tradição.

A minha mãe não queria saber se havia muita ou pouca gente. Não lhe interessava, ela gostava como a divertia mudar a casa ao contrário ou deitar o trigo de molho para ter as searas prontas para o presépio e para a lapinha. Pouco importava que tudo estivesse pronto apenas na véspera de Festa ou mesmo só na manhã do dia 25. Ia tudo a tempo, ia tudo sempre a tempo, mesmo que desse a impressão que era aquela a vez em que tudo naufragava.

Era uma arte, um talento e, sobretudo, uma correria desesperada onde, de facto, a única pessoa que se divertia era a minha mãe. E era bonito vê-la, com farinha agarrada à roupa, levantar a toalha que cobria os bolos de laranja para mostrar que estavam fofos. Ela comia-os quentes, “só para provar”, mas o bom era o cheiro, o cheiro que enchia todas as manhãs do dia de Natal e provava que, naquela maneira mais ou menos alucinada, conseguia ter a Festa em casa.

E não fazia diferença o percurso. Eu bem podia queixar-me do martírio, de ter andado de loja em loja, no dia das compras, carregada com embrulhos e sacos, posta de castigo à porta e mortificada de vergonha. Ou do que me custava limpar azulejos, janelas e portas e, depois, ir à missa, ouvir aquele coro de velhas desafinar. A Festa era aquilo, a minha mãe adorava o ambiente e vivia cada instante com uma alegria que, ainda hoje, ilumina a minha infância e adolescência.

E inspira o meu presente, agora que sou cada vez mais parecida com ela.