Crónicas

Bem junto a mim

Toca o telefone e eu atendo. O número estranho a fazer lembrar aquelas publicidades que nos invadem a privacidade constantemente. Mas desta vez o telefonema é teu, atendo só porque sim, achei que tinha que atender, que fazia sentido e do outro lado eras tu. Tem sido um ano difícil, sabes tão bem quanto eu, mas cá nos vamos aguentando de pé, quando não nos falham os joelhos e a corrida se mantém desafiante. Não me queres falar das cheias, nem tão pouco da seleção ou do Ronaldo, já muitos falaram, discutiu-se tudo e mais um par de botas mesmo sabendo que só quem está lá dentro é que sabe. Não julgo as pessoas, seguem na onda do desatino, da mediocridade e da incapacidade em elogiar sem olhar para dentro de casa. Foi aí aliás que a federação começou a perder, na comunicação mal feita, na mentira e no justificar o injustificável. Portugal perdeu com Marrocos e a soberba pregou-nos uma rasteira outra vez. Saímos todos mal na fotografia, encaixados num manto de neblina a querer esconder o óbvio. Seguramente que nos próximos dias tentaremos arranjar culpados, bodes expiatórios, selvagens a quem a vida deu pouco.

Nada disso parece ser tema para a tua chamada. O nervosismo inquietante faz-te tremer a perna, tanto que se nota ao telefone. Falas-me do tempo, da rua, das flores e dos que teimam em falar sobre nós mas seguimos firmes. A tua voz embargada faz-me viajar para tempos fora dos nossos tempos e eu, limito-me a acenar com a cabeça. Hoje estás na merda e escolheste-me a mim para te servir de fiel escudeiro. Dizes que não aguentas mais e eu não tenho como te dizer o contrário, enquanto os meus olhos viajam para o tanto que podes ser no futuro. A relação que tanto achavas perfeita acabou ao fim de um par de meses e teimas em te culpar como se tivesses algum tipo de doença que não te capacitasse para construir uma relação mais estável e duradoura. À tua volta os de sempre continuam a dizer apenas aquilo que queres ouvir sem terem o arrojo de te dizer a verdade. Pior, em vez de tentarem entender as tuas razões preferem achar as tuas inseguranças uma mera infantilidade, um capricho que não te deixa concretizar o que tanto ambicionaste.

Dizes com todas as letras que ainda gostas dele, que não estás a conseguir seguir em frente, que o teu mundo parou e não o consegues imaginar a girar novamente. Na tua cabeça estão mil e uma coisas que podias ter feito diferente e talvez aí tudo não tivesses chegado a este ponto. Aceitas que te façam de louca, desequilibrada, uma tonta que não sabe dar valor ao que tem e que se predispõe a sofrer por minudencias. Acabas por confessar a custo que não tens vontade de sair de casa, que passas tardes na cama, sem forças, objectivos ou determinações. As razões que te aparecem na mente fazem-te crer que fizeste tudo errado, que afinal de contas foste injusta, possessiva e ciumenta. Talvez não tivesses razões para isso, talvez fossem tudo filmes na tua cabeça. Os que te caem em sorte para um café ou jantar ao final do dia desvalorizam as tuas dúvidas e ainda te puxam um pouco mais para baixo mesmo sem saber da missa a metade, sem querer perceber o que te levou a este ponto. São duas horas e meia de conversa que pareceram 30 minutos porque tu precisavas de vomitar o que tens aí entalado. Ouvi-te com atenção mas também com preocupação.

Esta conversa, que tem dias, é o retrato da forma como muitas vezes prestamos pouca atenção à profundidade dos sentimentos dos que nos são mais próximos. Temos pouco tempo e quase nenhuma paciência para aturar as chatices dos outros, para ouvir o que os preocupa, o que os deprime. Desvalorizamos o que os outros sentem, achamos sempre que estão a fazer uma tempestade num copo de água e que sabem lá eles o que são problemas a sério. A verdade é que vivemos numa era em que cada vez é mais complexo construir relações estáveis e duradouras, seja pessoal ou profissionalmente, vivemos muito do momento e fartamo-nos com muita ligeireza. Não estamos dispostos a aturar nada, não fazemos o mínimo esforço para tentar que as coisas funcionem e saltamos fora à mínima contrariedade. Como dizia o escritor Mia Couto “nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta comunicação e nunca foi tão dramática a nossa solidão. Nunca houve tanta estrada e nos visitámos tão pouco”. Este é um problema transversal na nossa sociedade, onde não há espaço para os momentos mais duros e difíceis. Não há tempo para nos falarmos nem para conversarmos. Para aceitarmos os momentos difíceis dos outros como nossos nem capacidade para sermos o que é preciso quando alguém mesmo indiretamente nos pede ajuda. Bem junto a mim há quem precise de uma palavra e eu nem repare. Ou reparo mas tenho mais que fazer. Vai-nos faltando humanidade e altruísmo para darmos um pouco de nós aos outros.