Itália e França voltam a discutir por causa de navio com migrantes
Quatro anos depois da crise do Aquarius, um navio com migrantes cheios de problemas, cujo destino tinha inflamado as relações entre Itália e França, uma situação similar volta a motivar disputas entre Paris e Roma.
O braço-de-ferro agora centra-se no Ocean Viking, um navio humanitário da organização não-governamental SOS Méditerranée (SOS Mediterrâneo), que está bloqueado no mar com 234 migrantes a bordo, que Roma se recusa a deixar acostar, uma atitude considerada "inaceitável" por Paris.
Se o cenário parece repetir ponto por ponto o que se passou com o Aquarius, um antigo navio da SOS Méditerranée, que acabou por acostar em Espanha, depois de vários dias e uma crise diplomática entre Itália e França, desta vez, o contexto é diferente.
Esta crise ocorre três semanas depois da formação do governo italiano mais à direita desde o pós-guerra, dominado pelo partido dito pós-fascista de Giorgia Meloni, Fratelli d'Italia (Irmãos de Itália), que acabou com um período dourado, marcado pela amizade entre o presidente francês, Emmanuel Mácron, o antigo chefe do governo italiano, Mario Draghi.
A coligação de Meloni inclui o partido Liga, de Matteo Salvini, assente principalmente em uma retórica anti-imigrantes. Atual ministro dos Transportes, Salvini é objeto de processos judiciais por ter bloqueado migrantes no mar, em 2019, quando era ministro do Interior.
A crise do Ocean Viking "respeita sobretudo aos equilíbrios internos do governo Meloni", analisou Gilles Gressani, diretor da revista O Grande Continente, estimando que a Liga quer "sobreviver às tentações hegemónicas de Meloni e dar sinais ao seu eleitorado".
Do lado francês, a crise permite que Paris se posicione com um registo "humanista", acolhendo inclusive o navio -- uma hipótese apresentada como adquirida pela Itália, mas não confirmada pela França -- e fustigando o "comportamento inaceitável" de Roma, "contrário ao direito do mar e ao espírito de solidariedade europeu".
Gressani acrescentou que "a Itália quer aparecer como dura e inflexível e a França como humanista. Isso serve os interesses de cada um" e destacou que a chefia do governo italiano ainda não se expressou diretamente, "deixando falar os duros".
Jean-Pierre Darnis, docente universitário em Nice e Roma, admite a possibilidade de um "acordo pragmático": o acolhimento em França do navio, "o que seria apreciado e desmontaria parte do sentimento antifrancês em Itália".
A Itália, desde há muito na linha da frente das chegadas de migrantes, acolhe cada ano dezenas de milhares de pessoas que decidiram fazer a travessia do Mediterrâneo, a mais mortífera do mundo.
Com frequência, critica a falta de solidariedade europeia. O seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Antonio Tajani, afirmou claramente hoje que a crise atual era uma mensagem enviada à Europa e que o seu governo iria levantar o assunto durante um Conselho de Ministros europeus, na próxima semana.
"A França está consciente das dificuldades para os países de primeiro acolhimento. Compreendemos os italianos, é um assunto que discutimos com eles, desde há anos, mas as coisas mudaram", comentou uma fonte francesa envolvida no assunto.
"Hoje há mais países na situação de primeiro acolhimento", detalhou, citando a Letónia, para os refugiados bielorrussos, e a Polónia, para os ucranianos. "E ao nível institucional, a situação não está bloqueada como em 2018, uma vez que temos o pacto sobre as migrações", acrescentou.
Sob a presidência francesa da União Europeia, os ministros encarregados das migrações criaram um mecanismo voluntário de relocalização a partir dos países de primeira receção para outros países europeus. Mas, em setembro, a Grécia outros país na primeira linha, deplorou a " falta de vontade " dos seus parceiros.
"É um mecanismo que se pode melhorar, mas existe e prevê compromissos de solidariedade de uns para com outros", insistiu a fonte francesa.
Fonte esta que se inclinou para minimizar a crise franco-italiana: o governo Meloni "acaba de chegar, as equipas ainda nem estão todas completas, ainda se procuram os canais d discussão,... Isto deve entrar nos eixos, o importante é continuar a falar".
Darnis reforçou esta visão, ao considerar: "Não há um interesse verdadeiro em um divórcio".
Hoje, a comissão europeia apelou ao "desembarque imediato no porto seguro mais próximo" de todos os migrantes do Ocean Viking, "para evitar uma tragédia humanitária".