Crónicas

O Poder

1. Disco: gosto muito de Phoenix. Acabou de sair “Alpha Zulu”, um trabalho gravado pela banda no Museu do Louvre, durante o confinamento. Um conjunto de músicas cheias de intensidade e intimidade que integram uma espécie de renascimento, pois as raízes estão todas lá.

2. Livro: A par da asiática, a literatura africana é de uma inovação constante. Li, numa penada, “Dona Pura e os Camaradas de Abril”, do cabo-verdiano Germano de Almeida. Um pequeno grande livro que resulta numa abordagem ao 25 de Abril vista de outra forma. Germano de Almeida domina com mestria os cânones do humor. Um livro divertido que recomendo vivamente.

3. As questões do poder têm sido tão extensivamente analisadas e tão variadamente definidas que, pela multitude de pontos de vista, qualquer pessoa menos atenta e que depare com uma dúzia ou mais de definições, pode muito bem perguntar-se sobre a natureza do mesmo, porque confusa. Simplifiquemos então, evitando o simplismo.

Não estará descontextualizado afirmar que o PODER é uma relação. Aprofundando, é uma relação entre indivíduos, que aceitam, ou não, uma série de pressupostos: a origem do poder, o seu domínio, o alcance, o pressuposto, o tempo, os instrumentos e meios do seu exercício, a quantidade e a extensão. Também é certo que o PODER implica sempre, por mais ligeira que seja, coerção, seja ela bruta, manipuladora, ou de outra qualquer forma. São inúmeras as relações de poder, que podem ir de individuais a relações entre grupos, de familiares a relações laborais, de formais a relações informais, de políticas a relações sociais.

Seja de que forma for, muito poucos de nós não estabelecemos relações de poder com outros, onde somos, à vez, emissores de poder e receptores. Sou receptor no trabalho e emissor em casa com a minha filha mais nova, porque as outras “já se mandam” e em mim manda a minha mulher, uma verdadeira especialista em manipulação. No limite, posso sempre exercer o poder sobre mim. As minhas decisões, mesmo que afectadas por outros poderes, são minhas. Tenho sempre a possibilidade da recusa. Temos sempre, como indivíduos, a capacidade de dizer NÃO.

Sem querer complicar muito, analisemos alguns dos pressupostos e relações que vão acima.

A base do poder apoia-se em todos os recursos — oportunidades, actos, objectos, etc. — que podem ser usados para afectar o comportamento de outro, desde o exercício efectivo de autoridade, até à aceitação espontânea da mesma. No exercício do poder teremos de ter sempre em consideração factores psicológicos que incluem o carisma, a capacidade de convencimento, o acreditar, etc., também importante base para a aceitação.

A quantidade de poder, uma variável consoante a relação, está intimamente ligada ao uso dos meios. Quanto mais complexas as relações, maiores os meios afectados e a complexidade desse mesmo relacionamento.

O tempo é outra condicionante de enorme importância. Por menor que seja esse espaço, pode sempre influenciar a relação entre quem exerce e quem aceita o poder. O tempo será afectado por possível “ruído”, que transforme o que o poder pretende em algo de diferente. Logo, a relação entre o emissor e o receptor não é instantânea, nem automática nos seus resultados.

Não há como negar que o poder é uma forma de coerção. Tem de ser comummente aceite por uma larga maioria (seja por consentimento, seja por omissão) e implica sempre cedência de liberdade, apoiada numa espécie de contrato entre as partes. Como exemplo, podemos indicar as Constituições, definidoras de direitos e deveres, bem como reguladoras das relações, tanto do cidadão com o Estado, como das relações entre os três poderes — legislativo, executivo e judicial — e o modo como estes sustentam os diferentes sistemas relacionais.

Coisas como a confiança, a assertividade, a capacitação, criam no receptor a aceitação. Ninguém se atira para um abismo porque recebe uma ordem para o fazer, a não ser por puro fanatismo. São essas relações, que permitem que a distância entre a fonte do poder e o destino seja atenuada, pois é óbvio que o exercício do poder de proximidade é mais fácil do que o que se exerce à distância.

O resultado tem a ver com aceitação e confiança. De modo geral, entre nós, a confiança é pouca. Uma relação de poder tem que se apoiar na aceitação. Quanto melhor o poder for exercido, menos se dá por ele. Quando o sentimos no bolso, no dia-a-dia, a toda a hora e minuto, em actos de pura propaganda, quando o sentimos determinista, sem lógica ou explicação, quando nos sufoca em tudo o que fazemos, estamos perante um poder pífio. A falta de agenda, de prioridades, o constante navegar à vista, a hesitação que leva à má decisão, a desculpabilização e a desresponsabilização, lançando a culpa no inimigo externo, os olhos postos no final do mandato que impede a aplicação das tão necessárias reformas, a partidarização e o controlismo, a distanciamento entre as partes, o centralismo, etc. Um poder desinteressante que não nos merece respeito, apoiado na criação de relações de dependência — o cartão do partido, o nepotismo, a pequena e grande corrupção, o cabaz, a esmola, etc. Na Madeira é exactamente o que temos. Quem exerce maioritariamente o poder, e com simples contas de mercearia se chega lá, apoia-se nos 3 a 4 mil cartões partidários que, por sua vez e por relações de poder individuais, representam logo mais 10 mil, que também exercem uma qualquer forma de poder sobre mais uma mão-cheia de outras pessoas. Com os que se fartaram e aceitam o poder, não exercendo a sua capacidade de contribuir para mudar, votando, temos a explicação do eternizar deste inferno da Autonomia Socialista da Grande Laranja.

4. Segundo o Presidente da Câmara do Funchal, a obra da nova ETAR “tem uma durabilidade de 18 meses” e tem que estar terminada em Dezembro de 2023.

Esperem aí… estamos em Novembro e a obra “tem uma durabilidade de 18 meses”… se se queria referir ao tempo que medeia daqui até o final do próximo ano vão… 14 meses…

Mas “durabilidade”? “Durabilidade”?

du·ra·bi·li·da·de (latim durabilitas, -atis)

Nome feminino

Qualidade do que é durável. = DURAÇÃO

— “durabilidade”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Ou seja, o que o Senhor Presidente da Câmara disse foi que a obra, depois de pronta, durará 18 meses. Gastar 18 milhões de euros numa obra que só dura 18 meses, convenhamos que é um pouco de mais.

É o que temos. Foi o que votámos.

5. Andam por aí muitos que querem que vivamos num certo “presentismo”, que olhemos para o passado com as preocupações sociais e as categorias morais do presente.

Na cultura do cancelamento em que vivemos, desculpas destinadas a pedir perdão, são invariavelmente tomadas como admissão de culpa.

A História perde relevância todos os dias. Sei por demais que não sabemos tudo sobre o passado. Há factos que nos passam ao lado. Mas uma coisa é certa: olhar a História com os óculos da moral, da ética, do presentismo, não nos leva a saber mais sobre o modo como aqui chegámos. Com imensos erros? Claro que sim, mas que têm que ser vistos e entendidos no seu tempo, não no nosso.

6. A Venturosa figura diz que “o Estado vai perder dinheiro com a privatização da TAP”. Para si, não conta para nada que os contribuintes fiquem a ganhar, pois deixam de precisar de ver o seu dinheiro a cair num poço sem fundo.

O seu partido devia assumir de uma vez a máxima mussoliniana: “tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”… e trabalho.