A inflação, o custo de vida, a poupança: os versos de uma canção antiga
Aquela batalha contínua, sempre a fazer contas de cabeça, não era apenas para que não faltasse comida
A minha mãe tinha muitos dons e algumas capacidades quase mágicas como remendar buracos nas t-shirts ao ponto de me devolver a esperança. O que teria sido de mim se, no 7.º ano, o azar me tivesse tirado o prazer de ir para a escola com o Snoppy ao peito. A adolescência, esse hiato de tempo repleto de desastres, certamente seria pior, com imagens ainda mais vivas das minhas figuras estranhas.
Embora considerasse injustos muitos aspectos da minha vida – como ser gorda e ter pouco dinheiro – nunca duvidei do talento da minha mãe para transformar o que parecia perdido em algo aceitável. Era um dom, uma espécie de truque que implicava fazer ginástica e outras acrobacias com as notas de mil escudos arrumadas debaixo do papel de oferta que forrava a gaveta da cómoda. E o mais bonito é perceber como nunca se preocupou só com o essencial.
Aquela batalha contínua, sempre a fazer contas de cabeça, não era apenas para que não faltasse comida. A minha mãe poupava de todas as maneiras possíveis para termos uma casa confortável e umas roupas novas lá de vez em quando, em datas especiais ou quando admitia que não havia maneira de remediar. Nos anos bons, comprava feito; nos mais complicados fazia ela, na velha máquina Singer.
E o problema era a minha mãe ter feito um curso de costura – ia ser costureira de calças de homens e trabalhar para o meu tio Humberto – e tudo ter corrido mal na primeira experiência, mas os anos 80 foram duros no Laranjal. A casa estava em obras, o meu pai trabalhava quase todos os dias, às vezes aos domingos e, mesmo assim, a inflação a 23% engolia tudo.
Não havia outro remédio: era comprar tecido ou aproveitar os restos que sobravam da alfaiataria do meu tio. Um jeito dali, um puxão do outro e lá nascia uma saia ou um vestido, quase sempre a custo e depois de muitos acertos. Lembro-me de a ver, com os alfinetes na boca, naquela luta pela perfeição que não podia ter. A máquina não era nova, nem moderna, faltava o molde e, mesmo assim, tentava endireitar o que lhe parecia torto.
A minha mãe também tinha essa capacidade: a de não desistir. Os preços aumentavam, o dinheiro encurtava e, mesmo assim, mantinha o plano. Às vezes era difícil, cortava em tudo, nos lanches, nos bilhetes do cinema e nas entradas na praia. E podia dizer que aprendi com isto, o que não seria verdadeiro. Não me esqueci de como este exercício me remeteu para um lugar ainda mais solitário, o de alguém que nunca ia a lado algum.
E isso marcou a minha adolescência. Os meus pais eram apenas pessoas a tentar viver com dignidade num momento complicado e incerto, o que nunca é simples, nem fácil e certamente lhes trouxe aflições e medo. Lembrar-me deles talvez me ajude a enfrentar o que está a chegar.