A festa e adolescência
Num instante era uma criança; um momento depois estava a aprender a defender-me dos olhares esquisitos dos rapazes mais velhos
Crescer foi complicado e por muitos motivos, o pior foi ter ficado com tamanho de mulher aos 12 anos. Não tive tempo para me habituar. Num instante era uma criança; um momento depois estava a aprender a defender-me dos olhares esquisitos dos rapazes mais velhos. O corpo tinha seguido caminho sem me avisar e era estranho. E eu não queria saber de rapazes, mas ansiava por um grupo de amigos como os que lia nos livros dos Cinco e dos Sete e em todos os livros juvenis dos anos 80.
E, para quem não se lembra, esses livros falavam de aventuras, férias na praia e do pequeno almoço com ovos mexidos e bacon. Eu não sabia bem o que era bacon, mas parecia tão saboroso, tal como devia ser ter amigos. O que não foi fácil para aquela miúda, a debater-se ferozmente contra as hormonas, tímida e encarcerada num corpo que não reconhecia. Não fosse isto suficiente padecia ainda de uma timidez que me fazia corar até às orelhas. Eu até me preparava, queria fazer conversa só que nunca corria bem. Falava baixo ou alto, tremia-me a voz ou dizia coisas a despropósito.
Na escala de hoje seria aquilo a que se designa como cromo ou andaria muito perto disso. E por isso parte das minhas melhores memórias de adolescência estão no grupo de jovens da Visitação. O grupo tinha sede na paróquia, organizava festas no salão paroquial, daquelas em que dançava slows no escuro e debaixo de uma bola de espelhos a rodar. Na verdade tinha um lado mais pagão ao que se juntava os encontros de jovens católicos e os momentos de oração e reflexão. Também cantavam nas missas, naquela mistura bem ensaiada das vozes mais graves dos rapazes e dos agudos das raparigas.
Eu também cantava, mas mal e fazia coro, de preferência baixinho para não estragar o que estava tão bem trabalhado. Na verdade, sentada no terceiro banco na igreja, enquanto a professora Maria José e as filhas cantavam, perguntava-me muitas vezes os motivos de Deus. A fé, nesse tempo, ainda não me tinha abandonado e, por isso, procurava uma explicação para ser como era, daquele formato e, sobretudo, sem uma voz de rouxinol com a Susana, a Sílvia e a Sandra, até os nomes tinham harmonia.
O grupo de jovens era ainda responsável por preparar o ato de Natal e, por isso, desse mundo de memórias, fazem parte os ensaios no mês de Dezembro, nos feriados e nos domingos. Eu podia ser estranha e sentir-me desajustada, mas corria pelo beco acima, o coração a bater forte sem saber se me voltavam a escolher para fazer de Nossa Senhora. E eu cinco vezes a Nossa Senhora da Visitação, figura de destaque ali no altar, com um São José à frente, uns pastorinhos aos pés e um menino que, quase sempre, chorava, enquanto se cantava e, no adro, os estouros das bombas da Festa tiravam o padre do sério.
Embora me faltasse o jeito para acalmar o Menino Jesus, fazia o que podia para, no fim, brilhar uns dez minutos no adro depois da missa e receber cumprimentos. Aquele grupo dava-me carinho, atenção, acolhia-me e, de uma certa maneira, fazia de mim uma rapariga como as outras, foi um porto naquela travessia complicada da adolescência. Fiz amigos, fui a passeios, dancei slows, entrei em peças de teatro e participei em grupos de reflexão e em encontros de jovens católicos. Os laços cortaram-se naturalmente, quando fomos todos viver as nossas vidas. Ainda assim, quando se aproxima o Natal, lembro-me muitas vezes dos ensaios na igreja, de como eram e de como tenho saudades. De mim, daquela inocência e até da fé que deixei de ter.