Crónicas

O bom, o mau e a desterrada

O desterro a que foi condenada a Universidade da Madeira foi decidido sem aparente justificação

Há uma aura inconfundível de declínio no segundo mandato de Marcelo. Não só do professor, mas também do cargo. Primeiro, a desqualificação estatística do número de crianças que foram vítimas de abusos sexuais na Igreja. Depois, a defesa apressada de António Costa perante as acusações de favorecimento a Isabel dos Santos no processo do BPI. Agora, a miserável redução dos direitos humanos a nota de rodapé do Mundial no Qatar. Marcelo Rebelo de Sousa é Presidente da República até 2026, mas, enfim, esqueçamos isso.

O bom: Lá em Cima – Residência Artística do Ilhéu

No Ilhéu estamos mais perto do céu. Podia ser letra de canção, verso de poema ou slogan publicitário, mas é convite a conhecer um novo espaço cultural em Câmara de Lobos. Sobranceiro à baía que Churchill pintou, de um antigo infantário nasceu uma residência artística que, embora seja ponto de paragem e contemplação, se quer como encruzilhada de pessoas e ideias. O rastilho que o orçamento participativo lançou, e que a Câmara Municipal de Câmara de Lobos não deixou morrer, foi aceso pelo Coletivo Inquieto, que é como quem diz a Carolina, a Laura, o Tiago e a Rosa. Coube-lhes a missão de criar a identidade do espaço, dar corpo ao conceito do “Lá em Cima” e de imaginar as primeiras produções culturais da residência. O Coletivo é filho da pandemia e essa origem de má memória traça um paralelo curioso com o passado do Ilhéu. Onde agora se respira cultura, já se respirou o ar bafiento da pobreza. No Ilhéu, onde agora se imaginam formas e cores, muitos definharam à mercê da cólera e outros tantos sobreviveram na miséria indizível. Esse passado de má memória oferece um significado profundo e retemperador à nova vida do Ilhéu. Tal como as pessoas, as cidades reinventam-se. Não para esconder as agruras do passado mas, com orgulho na sua memória, garantir que ela nunca mais se volta a repetir.

O mau: Direitos Humanos em Portugal

Setenta trabalhadores a pernoitar num alojamento com uma única casa de banho. Dezenas de colchões a preencher todas as divisões de uma só casa. Trabalhadores obrigados a mendigar para sobreviver. Trabalho prestado sob constante ameaça de violência. Podia ser no Qatar e, por isso, distante o suficiente para nos indignarmos no conforto dos intervalos do Mundial de futebol e difuso bastante para dispensar uma solução. Infelizmente é no Alentejo, onde uma operação policial desmantelou uma rede criminosa que se dedicava à exploração de trabalhadores imigrantes, em regime de quase escravidão. Enquanto nos perdemos no folclore dos pequenos gestos de desprezo em relação ao regime do Qatar e concentramos a nossa indignação sob a forma de braçadeiras coloridas, os mais básicos direitos humanos são repetidamente violados debaixo do nosso nariz. Não se trata de branquear a pândega de corrupção que permitiu um Mundial no Qatar, muito menos de relativizar o árido deserto de direitos que por ali grassa. Apenas a constatação de que os direitos humanos são uma flor que usamos à lapela. Para isso o Qatar serve perfeitamente. Permite-nos um desconforto confortável, facilita-nos uma indignação acomodada e não se prolonga por mais de um mês. Ao mesmo tempo que lá disputa-se um Mundial da vergonha, em Portugal vive-se um quotidiano de desprezo pelos direitos humanos. O primeiro deixará de ser notícia até ao Natal, o segundo continuará a passar-nos despercebido.

A desterrada: Universidade da Madeira

Os sucessivos orçamentos do Estado são discutidos ao ritmo da bipolaridade parlamentar, que embora facilite a vida a quem discute, não permite uma análise clara das decisões orçamentais. Especialmente para a Madeira, os debates do orçamento do Estado reduziram-se a uma conversa de surdos, entre quem desfia o rol interminável de virtudes e benesses orçamentais para a Região e quem, da outra trincheira, encontra pouco mais do que defeitos, descontos e desprezo. Em véspera de eleições regionais, a dialética política não permite muito mais do que isto. Ainda assim, há temas orçamentais que deveriam ser de outro calendário. A Universidade da Madeira será, certamente, um deles. Não só pela sua importância para o futuro da Região, mas também porque é consensual a todos os quadrantes partidários e às respetivas longitudes nacionais e regionais. Eis senão quando essa unanimidade foi brutalmente interrompida com o orçamento do Estado para 2023. Por obra e graça dos deputados socialistas, foi introduzida uma alteração que garante uma majoração total de 4,8 milhões de euros no financiamento da Universidade dos Açores, ao arrepio da congénere madeirense. O desterro a que foi condenada a Universidade da Madeira foi decidido sem aparente justificação mas apresentado por Francisco César, filho do ilustre Carlos César, como uma grande vitória do povo açoriano. Para César filho trata-se de um “reconhecimento de que as universidades insulares necessitam, pela sua ultraperiferia, de um apoio adicional para ter um funcionamento que verdadeiramente gere conhecimento e riqueza nas Regiões Autónomas”. A pomposidade do discurso contrasta com a facilidade com que o deputado se esqueceu que a Madeira também tem uma Universidade. Será que algum dos 3 deputados madeirenses do PS lhe pode lembrar?