Fotografia estereoscópica: a invenção de uma imagem real – parte III
No último texto sobre fotografia estereoscópica, essa imagem que desde finais do século XIX fascinava audiências pela possibilidade de imersão numa tridimensionalidade, abordámos a ideia de mergulho no real.
Como sugeria anteriormente, o visionamento deste tipo de imagens, então amplamente difundidas, preencheu o lazer quotidiano da burguesia oitocentista, instigou os seus impulsos colecionistas e constituiu a sua cultura visual. Ao analisar a construção histórica do observador, o crítico de arte Jonathan Crary descreve-nos o surgimento de um novo tipo de indivíduo, fruto dos modos de circulação, consumo, produção e racionalização que emergiram no século XIX. Em Techniques of the Observer, o autor descreve como, desde 1840, e em particular desde o surgimento de uma série de dispositivos, entre os quais o estereoscópio, a experiência visual se passa a autonomizar do seu referente, podendo assim circular no fluxo dos meios de mobilidade e consumo do mundo capitalista e industrial que as imagens começam a integrar. Na fotografia estereoscópica, a imagem tridimensional produzida pelo cérebro a partir da percepção de duas imagens semelhantes (embora distintas), pretende evocar os“próprios objectos, vistos com os seus relevos, as suas concavidades, tal como existem na natureza”- tal como referido num anúncio publicado pelo fotógrafo Louis Nasi no Semanário Asmodeu, em 1857. No entanto, parte central da contribuição deste autor para o estudo da estereoscopia é o facto de apontar para o caráter de "falso realismo" destas imagens. Crary reforça que ao percorrermos uma imagem estereoscópica nunca a apreendemos de forma geral; que a sua experiência para o observador é a de um“efeito perceptual de patchwork de intensidades diferentes do relevo numa única imagem”, imagem que embora possua uma“clareza alucinatória”, não forma um plano uniforme, coerente ou homogéneo, do ponto de vista da convergência do olhar.
Por outro lado, ao referir-se ao facto da estereoscopia ter sido precursora de uma visualidade turística do mundo, pela sua coleta em imagens, Teresa Mendes Flores refere-se igualmente à importância dos Alpes e da monumentalidade da montanha enquanto recorrência iconográfica, lugar comum à prática comercial e amadora da época. Ao ver esta fotografia estereoscópica da cascata do “Véu da Noiva” tirada já nos idos do século XIX, não pude deixar de pensar nesse seu artigo, “Simmel’s alpine aesthetics and the stereoscope. The aesthetic qualities of the stereoscopic gaze and the stereo views by Manuel Alvarez”. E em particular, no facto de referir que aquilo que Crary designa (ou designaria) de aparentes distorções de uma imagem dada como acentuadamente realista, contribuiu para traduzir a monumentalidade da montanha (mas também da rocha, das formações de gelo, etc.). A autora realça que essa imagem miniatura na qual imergimos torna contudo esses objetos gigantes e próximos.
Sem poder ver a imagem da cascata aqui reproduzida, numa fusão numa imagem singular que denote esse efeito, podemos no entanto supor que a cascata, a formação rochosa e suas texturas, emergiam desse modo com particular fulgor, relevo e dimensão. Mas também com proximidade, quando vista através dum visor apropriado. O rapaz que segura uma cana, simultaneamente presente e ausente do centro da imagem, talvez ali esteja para nos dar uma noção da escala, para acentuar, por contraste, a dimensão avassaladora da natureza. Mas porventura a sua mera presença sirva para assinalar que a fotografia, enquanto técnica moderna da era industrial, ao mesmo tempo exibia a monumentalidade e a conquista ou domesticação da natureza. Será esta uma das suas possíveis leituras; embora como técnica sempre tão fascinante e multifacetada, a fotografia esteja aberta a diferentes sensibilidades e olhares a partir da sua inscrição histórica.
Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.