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O descuido e o Estado

Quando não cuidamos de um jardim, as ervas daninhas crescem e apagam a harmonia que antes existia. O que era belo, torna-se feio e desagradável. O mesmo acontece com um prédio no qual os residentes não cuidam das áreas comuns, não dispõe do lixo da forma devida e não arranjam as janelas quebradas pelos ventos ou pelos delinquentes que lhes atiram pedras. E o que a experiência nos leva a concluir é que, quanto mais abandonado um jardim for e quanto mais janelas forem partidas num prédio, ainda mais abandonado esse jardim ficará e ainda mais janelas serão partidas, pois serão cada vez menos aqueles que estarão disponíveis para extrair as ervas que não param de crescer ou para lutar contra vândalos que passam. Assim, a destruição gera mais destruição. O selvagem ocupa o lugar do bom.

Infelizmente, há muitos jardins abandonados e muitas janelas partidas na sociedade portuguesa. Existem no discurso público, cada vez mais centrado em temas inócuos e cada vez menos capaz de discutir, com a frontalidade que se exige, a pobreza galopante, o empobrecimento generalizado e os problemas que nos levam para o fundo. Existem na banca, que se afirma como um negócio e não como a alavanca que a pequena e grande economia precisa. Existem nos partidos, que trocaram o debate livre pela militância controlada e com opiniões ditadas de cima, pois pensar o futuro de forma aberta e plural não se coaduna com os empregos que importa distribuir. Existem nas escolas, onde a classe docente é amplamente desrespeitada e vê a sua missão formadora reduzida a tarefas de secretaria. Existem na Saúde exausta, na Justiça lenta e tardia e nas redes de amiguismo e compadrio que proliferam, seja por via de ajustes directos, de subornos, de favores ou das mais criativas estratégias e artimanhas que têm provado que a República é muito generosa para quem é amigo dos seus.

Claro que nada disto é novo. Nem é, tão pouco, um assunto exclusivamente rosa ou exclusivamente laranja. Pelo contrário, é um problema endémico da classe política e das altas lideranças institucionais, o qual, por sua vez, forma apenas a ponta do iceberg de uma estrutura submersa sinistra que, há décadas, têm transformado a governação e a administração pública em plataformas de enriquecimento ilícito, ocultação de incompatibilidades, apropriação de verbas e bens públicos e um desinteresse generalizado pela prossecução do Bem Comum.

Quando a este contexto acrescentamos um Estado que legisla sem ser capaz (ou sem ter vontade) de fazer o que legisla, rapidamente percebemos que estamos num caminho acelerado para um desastre humano, pois quem mais deveria defender aqueles que os sustentam com o seu trabalho já há muito desistiram da sua função principal e exibem, hoje, uma trágica e triste falência de autoridade. Ou não é esta a verdade?

E a cada dia que passa sem certos ministros serem demitidos, sem certos políticos serem condenados, sem certas empresas serem banidas de acordos com a Função Pública e sem certas redes de interesses serem cabalmente expostas, com todas as consequências que daí advirem, as ervas daninhas vão asfixiando a vida do jardim, as janelas vão sendo partidas pelas pedras dos delinquentes, os falsos moralismos acumulam-se, os assobios para o lado na hora de arcar com as responsabilidades imperam e a culpa morre. Solteira, pois claro.