Como tudo isto mudou
30 anos depois daqueles continuo de microfone na mão sem nunca ter experimentado outra profissão a não ser esta, a de jornalista
O aviso está lá, no site da Segurança Social, como que a lembrar-me que, pronto, os anos passam, a idade não perdoa e que, sim, a reforma é um assunto do meu interesse. E o clique no “simular a pensão” é quase imediato, sem olhar o texto comprido e em letras miudinhas a explicar que o resultado é apenas uma estimativa, uma aproximação ao que será a minha vida e os meus rendimentos em 2038.
Até me custa a encaixar o ano, os anos que terei nesse futuro, mas está mais perto do que 1992, quando, depois de enfrentar a administração da rádio, lá me pagaram três meses de salários, com descontos e como mandava a lei. Tudo somado foram pouco mais de 840 euros que, naquelas férias do 3º para o 4º ano da faculdade, valeram-me uns óculos de vista novos, vários meses de renda do quarto em Lisboa, uns sapatos e um blazer.
Era cinzento, bonito e tão elegante como a loja onde o comprei, a boutique Quatro Estações, atrás da Assembleia Regional. As empregadas olharam-me de lado, também me lembro disso. Eu vinha de uma inauguração, trazia os sapatos cobertos de pó e, sim, era uma miúda de cabelo comprido e calças de ganga surradas. O casaco custou-me o mesmo que um mês de renda do quarto, mas acho que me senti ofendida com os olhares. E depois era o meu primeiro ordenado, um dinheiro transpirado.
Não só tive de o ir pedir à administração que, de princípio, não me levou a sério, como dera trabalho e obrigara-me a ultrapassar vergonhas, medos e até os nervos. Eu tinha 21 anos quando entrei ao trabalho no fim do mês de Julho de 1992 na redacção da RJM, o 88.8 FM. A rádio ficava no último andar, os estúdios tinham vista para os telhados da cidade e, além de mim, havia mais cinco jornalistas.
As notícias nacionais e internacionais chegavam por telex, não havia computadores e quando era preciso montar uma reportagem era usada uma máquina de bobines e fita, um aparelho que me parecia difícil e caprichoso. Nunca lhe toquei, os jornalistas mais velhos tratavam disso. Eu tinha por missão correr a cidade, gravar as declarações e voltar a tempo dos noticiários principais. Começava às nove da manhã, acabava ao fim da tarde e ia contente para casa.
O mundo era outro. A União Soviética estava em frangalhos e, em Sarajevo, morriam pessoas numa luta sanguinária, mas todos tinham esperança. A Portugal chegava o dinheiro da Europa e na Madeira houve eleições regionais e muita festa, muitas inaugurações. Sei que todos os dias se inauguravam caixas de correio e centrais telefónicas, havia lançamento de primeiras pedras de obras. E lembro-me de ter ido ver o primeiro edifício inteligente, em que as portas e as luzes funcionavam apenas quando era preciso.
A televisão por cabo chegou nesse ano e, quando se pensava no futuro, não havia dúvidas que seria bom e muito melhor. As pessoas ganhavam melhor a cada ano que passava e, aos poucos, compravam carro, inscreviam-se em cooperativas para comprar um apartamento e deixar a casa dos pais. A maioria, no entanto, não percebia bem os meus planos, queria mesmo ser jornalista, via-me assim de microfone quando fosse mais velha? Eu não sabia bem o que responder, dava a impressão que os desiludia quando dizia que sim, vou ser isto a vida toda.
Eu acreditava que seria jornalista de guerra, de grandes acontecimentos. Não fui, mas 30 anos depois daqueles três meses em que recebi os primeiros salários continuo de microfone na mão sem nunca ter experimentado outra profissão a não ser esta, a de jornalista. Só não sei se ainda serei em 2038.