Análise

As verdades e a “desverdade”

A Igreja não corre o perigo de fechar portas, mas tem de mudar, se quiser manter nas suas fileiras os que acreditam

A Igreja Católica está a fazer o caminho das pedras, entre o purgatório e o inferno, num tempo ‘horribilis’ para uma instituição com séculos de história, determinante na vida de milhões de pessoas e com influência directa em quase todas as áreas da sociedade. Os casos de abusos sexuais caem em catadupa, fazendo estilhaçar telhados inquebrantáveis há meia dúzia de anos. São décadas de encobrimento de abusadores e pedófilos da pior espécie, que se aproveitaram da batina protectora para expiarem o pecado execrável, especialmente, junto dos mais desprotegidos e desamparados. Durante décadas o que se ouvia à boca pequena não saía dos círculos onde a suspeita não se provava, muito por inacção da hierarquia, que abafou a indignidade, limitando-se a transferir de paróquia, de cidade ou – se necessário fosse – de país, o seu membro infractor, que continuava, impunemente, a pregar a actividade criminosa noutras paragens. Nada mais lhe acontecia. Como disse Frei Bento Domingues, espirito livre e desempoeirado, recentemente à RTP, “muitos fizeram-se padres a pensar na clientela”. Nem mais. Mas se muitos ingressaram na carreira religiosa com esse fito, poucos foram os que se dignaram, a bem da verdade e dos ensinamentos cristãos, a barrar-lhes o caminho. E tem tanta culpa aquele que mata como o que nada faz para impedir o crime. É com mágoa que constatámos que a hierarquia da Igreja optou por lavar as mãos em vez de fazer o que lhe competia, denunciando e entregando à justiça civil e não divina abusadores e pedófilos que semearam a dor por mero capricho pessoal.

Será a Igreja uma instituição pedófila? O líder dos bispos portugueses, o madeirense José Ornelas, não aceita o epíteto. Ele que está a ser investigado pelo Ministério Público por “possível comparticipação em encobrimento” de abusos sexuais de menores, assume a existência de “casos”, mas diz ser uma “completa desverdade” tomar a ‘nuvem por Juno’. Queremos acreditar, por tudo o que diz a Igreja Católica a milhões de fiéis e não fiéis, que é assim. Não podemos esquecer nem obliterar a sua obra na Educação, na Saúde, na Solidariedade. A perversão não é geral, mas é significativa e preocupante. Recebeu inclusive um Prémio Nobel da Paz, que comoveu o País na altura da independência de Timor-Leste. Mais do que enterrar o passado sombrio, cabe aos dirigentes da Igreja fazerem a introspecção devida, pois os pedidos de desculpa não superam a necessidade de debater a sério a crise pela qual esta está a passar, adaptando e actualizando o discurso aos novos tempos, onde não podem entrar situações de privilégio inexplicáveis, encobrimentos de crimes, nem absolvições de cúpulas indiferentes ao sofrimento alheio.

A Igreja não corre o perigo de fechar portas, mas tem de mudar, se quiser manter nas suas fileiras os que acreditam e os que procuram um sentido na vida.

Reconheço-lhe o esforço em comunicar melhor, explicar, pedir perdão, mas mesmo o passado tenebroso só pode ser enterrado se for resolvido. A mudança de discurso de alguns dos seus mais altos dignatários, como é o caso de Dom José Ornelas, tem de ser complementada com mais acção, mais investigação e punição, se for caso disso. Porque o foco principal é a vítima. Que a Igreja não se esqueça disso. Não enveredemos pela demagogia simplista e redutora de a considerar uma instituição pedófila. Não o é. Mas os sinais estão todos aí. É preciso saber interpretá-los.