Dívida a Saramago
“…também creio que ainda nos falta muito para chegarmos a ser verdadeiramente humanos. Se o seremos alguma vez.”
Destaco dos Cadernos de Lanzarote/1996 uma afirmação de José Saramago que comporta aquele que é um dos maiores legados do nosso Nobel da Literatura: o alçar a humanidade ao papel de principal ator da existência.
No contador da História e de histórias que nos fascinam e apaixonam é o humano que interessa. Em José Saramago importa a humanidade detentora do seu próprio destino e única responsável pelos seus próprios atos.
No texto de Saramago “ao homem nada é impossível”. Ele é capaz de cuidar do seu próximo, é capaz de inventar, de criar, de fazer a história prosseguir. Tal como a vontade humana é capaz de amar de forma incondicional, o génio humano (tal como Blimunda, Baltasar e Bartolomeu Lourenço) é capaz de erguer a passarola; é capaz de superar obstáculos (como na saga dos Mau-Tempo) e é capaz, até mesmo, de mudar o rumo da história.
Quando é exposta a humana fragilidade, a nossa cegueira, o medo da morte, as capacidades de destruição, logo Saramago exibe o homem ao próprio homem, a capacidade de sublimar, de compaixão, do altruísmo, da liberdade, da justiça, do amor. Demasiado humano, o humano é mortal, no entanto, aspira à imortalidade; está sujeito ao tempo, porém, aspira à divindade; é criatura, mas deseja ser criador.
Tal como todos nós, no Evangelho de Saramago, o Cristo Homem traz consigo todas as marcas de nossa humana fragilidade e de nossa força divina. E é em nome da humanidade que Saramago, através dos tensos diálogos, das suas alegorias, da elaboração de grandes metáforas e parábolas, nas diversas formas de confronto do humano com o absurdo, com o desconhecido, através da ficção narrativa, nos seus retratos literários, em tudo persegue um objetivo: a tentativa de entender o que significa o ser humano.
No Centenário do nascimento de Saramago será destacada a atualidade da sua obra, relida aquela literatura que continua a habitar e a inquirir os nossos dias. Para além de tudo isso, para mim, entre muitos outros aspetos, importará valorizar, sobretudo, a acutilância da sua palavra sobre o muito que nos falta para chegarmos a ser verdadeiramente humanos, com a insistência de uma indomável esperança na humanidade, uma esperança que não aceita qualquer forma de resignação, nem a exploração, nem a desigualdade que desfigura a comum humanidade dos humanos.
Muito devemos a Saramago, mas, em especial, com ele aprendemos a dizer como ainda nos falta tanto caminho para chegar a ser autenticamente humanos.