Furtemos
O título do artigo pode parecer um incentivo ao furto que, segundo o Livro II, Título II, Capítulo II, Art.º 203º do Código Penal português, é considerado crime contra a propriedade e passível de pena de prisão.
Pior seria, talvez, se em vez de “furtemos” tivesse escrito “roubemos”. O roubo, segundo o Livro II, Título II, Capítulo II, Art.º 210 do Código referido, tem a agravante de ser definido como “(…) subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel ou animal alheios, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir (…)”. Ou seja, requer uma “ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física” que agrava a pena a aplicar.
Vem esta arenga jurídica à conta de diversos títulos de imprensa escrita, televisões, rádios e redes sociais que dão conta do aumento exponencial de furtos em mercados, supermercados e grandes superfícies, camiões de transporte de alimentos, de artigos alimentares de primeira necessidade, que obrigou a que as referidas lojas começassem a colocar alarmes em produtos de baixo preço, exemplos: latas de sardinhas em conserva, azeite comum, etc.
São furtos (não roubos) que nos fazem pensar na sua razão de existirem. Não estamos a falar de desfalques, desvio de verbas feitos por banqueiros impolutos, negociatas milionárias efectuadas por alguns governantes com empresas próprias ou de familiares, de contratações milionárias não devidamente justificadas, de avultados “empréstimos” feitos por amigos ou de gestão danosa de empresas públicas. Essas são situações “normais” que apenas provocam pequenos sobressaltos, quando, frequentemente, acontecem.
Falamos de furtar comida. Para quem tem fome e não tem dinheiro para adquirir bens de primeira necessidade. Num país que, desde 2014 a 2018 parecia querer recuperar o atraso em relação aos países parceiros, mas que a partir da pandemia (não exclusivamente por causa dela) iniciou um processo de regressão que o está a posicionar num lugar bem pouco desejável.
A população portuguesa está mais pobre e a ficar para trás. Cada vez há mais agregados familiares nos escalões menores do IRS. Mesmo depois de considerados os apoios sociais do governo e de associações não governamentais, Portugal, entre 2019 e 2020, regrediu em três indicadores fulcrais: a percentagem de população em risco de pobreza ou exclusão social, a taxa de risco de pobreza e a desigualdade na distribuição do rendimento. A chamada Classe Média está a caminho da situação de pobreza, os pobres cada vez mais pobres e os ricos… cada vez mais ricos.
Hoje, somos o 2.º país da Europa com mais pessoas a viver em más condições materiais. Mais de 100.000 famílias estão a receber cabaz alimentar e não é suficiente. A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social afirmou que podem chegar aos 120 000 que é o limite máximo possível (Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas − POAPMC).
Após os apoios sociais, o índice de pobreza ultrapassa os 18%.
Apesar da taxa de desemprego, oficialmente, estar a diminuir, a pobreza aumenta o que parece um contrassenso. E ainda não começaram a cair, a sério, as prestações dos empréstimos, para habitação própria e outros, que têm estado em moratória.
O que pode fazer uma família que não tem condições materiais de alimentar os filhos, os idosos e a si própria?
Furtar. Furtar comida para não morrer à fome. Pode ser que assim a situação se torne uma prioridade real nas preocupações do Governo.