Crónicas

Fotografia estereoscópica: a invenção de uma imagem real – parte II

No último texto aqui publicado, referi-me à fotografia estereoscópica e sua emergência no século XIX, acrescentando agora algumas linhas sobre este curioso dispositivo. Embora hoje mais facilmente traduzível como fotografia tridimensional, esta foi na sua origem conhecida como fotografia com relevo, como refere o investigador em media visuais Victor Flores no prefácio do livro A Terceira Imagem. A Fotografia estereoscópica em Portugal, obra resultante de um estudo pioneiro sobre a técnica no contexto português. Ao formato com relevo do meio visual acresce que, apesar de se tratar de uma prática de relevo na sociedade burguesa oitocentista, de ter sido exercida pelos primeiros fotógrafos portugueses e considerada elemento de distinção de classe, a mesma nunca foi valorizada enquanto proposta criativa autónoma, estando ausente dos Salões onde se destacava a arte da fotografia (ou a fotografia enquanto arte).

Esta precoce desvalorização da prática nos meios da arte está porventura na origem do desconhecimento e invisibilidade que a estereoscopia veio a merecer no âmbito história da fotografia portuguesa. E isto apesar de, (reforço, a partir da perspetiva de Flores), ser uma prática expressiva, uma prática de relevo a partir da segunda metade do século da revolução industrial; ser uma prática que contribuiu substancialmente para a divulgação de “vistas”, para um apetite por um olhar turístico sobre o mundo, como aliás costumamos associar à generalidade da prática fotográfica (mas não tanto especificamente em relação à fotografia com tridimensionalidade).

Dito de outro modo, a partir da década de 1850 e durante algumas décadas, grande parte da fotografia que circulava comercialmente, uma parte substancial da produção profissional e amadora que construiu uma visualidade e permitiu o colecionismo de paisagens e lugares pitorescos distantes - ou então vistos como diferentes -, era com relevo, era estereoscópica. É nesse sentido que Victor Flores parece depreender que a grande popularidade da fotografia, em geral, se deveu em boa medida ao sucesso que a fotografia estereoscópica gozou como prática comercial e amadora, em particular. Flores destaca, inclusivamente, que ao contrário do que parece ter sucedido em outros países europeus, em Portugal este tipo de produção é mais lúdica, privada e “artesanal” do que “industrial” e comercial.

Não existe, tanto que eu saiba, um estudo particular sobre a fotografia estereoscópica na Madeira, mas sabe-se que fotógrafos madeirenses a praticaram aqui e em outros locais – por exemplo, João Francisco Camacho. Além disso, casas profissionais como o próprio Atelier Vicente’s, atual Museu de Fotografia da Madeira, venderiam cartões estereoscópicos tanto de proveniência estrangeira - que ecoariam vistas longínquas e quem sabe artigos luxuosos, obras de arte apropriados ao e pelo gosto da burguesia local –, como imagens da ilha que se dirigiam ao mercado cosmopolita da época.

Ou seja, além de importarem e venderem esses cartões, tiveram uma produção e edição próprias e com fins assumidamente comerciais.

Sem dar a dimensão do seu real efeito tridimensional, podemos naturalmente afirmar que as imagens aqui reproduzidas foram feitas fora do estúdio, como normalmente acontecia com a estereoscopia. A primeira dupla de imagens é da autoria de Joaquim António de Sousa (à semelhança daquela reproduzida aqui há duas semanas) e capta uma cena urbana, de rua, um acontecimento religioso e social: uma procissão. A segunda, com o cunho do Atelier Vicente’s, representa uma “temática” que além de prática social se tornou uma recorrência visual, (arriscaria dizer), à escala regional: a cena do piquenique no campo. Cena curiosamente disposta perante a dupla lente do fotógrafo, como aqui podemos ver, mas cuja antecipação da tridimensionalidade, seguramente prevista por aquele, não é para nós visível. E não o é aqui, nas folhas do jornal ou do ecrã do computador, nem o será no arquivo - na eventualidade de ali manusearmos uma adequada prova física em positivo a partir dos negativos -, se desprovidos do visor apropriado que nos revele o seu relevo.

Ana Gandum com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.