China "mais ideológica" e agarrada à política 'zero covid' dita êxodo de estrangeiros
Nas mais cosmopolitas cidades da China, festas de despedida tornaram-se rotina entre a comunidade de expatriados, refletindo um êxodo em massa suscitado pelas altamente restritivas medidas de prevenção epidémica e a ausência de perspetivas futuras.
"Quando vim pela primeira vez à China, lembro-me de sentir a euforia de estar num mundo repleto de possibilidades", contou Jaime Orellana, que chegou ao país asiático em 2009, à agência Lusa. "Tudo o que podias imaginar era possível construir aqui".
Orellana começou por abrir um hotel no centro de Pequim e, nos últimos anos, trabalhou com uma agência que organizava viagens para executivos. Ele viveu mais tempo na China do que no México, o seu país de origem.
Este mês, empacotou roupas, livros e objetos coleccionados ao longo da última década, organizou uma festa de despedida e, no dia seguinte, partiu de Pequim num voo só de ida.
"Aquela Era chegou ao fim", descreveu.
A partida de Orellana faz parte de um êxodo acelerado de estrangeiros da China, à medida que a política de 'zero casos' de covid-19 ditou o encerramento das fronteiras e transformou a vida no país numa sequência de bloqueios e quarentenas.
As empresas estrangeiras apontam também para alterações profundas na China, que, sob a governação do Presidente Xi Jinping, devolveu ao Partido Comunista Chinês (PCC) o papel de líder político, económico e social, em detrimento do setor privado e sociedade civil -- uma reversão da trajetória do país desde que o ex-líder Deng Xiaoping lançou o período de "reforma e abertura", em 1978.
Xi deve assegurar, esta semana, um terceiro mandato como secretário-geral do PCC, durante o 20º Congresso da organização. Os estrangeiros a residir no país esperavam que, a seguir ao evento, a China relaxasse as restrições, semelhante ao que foi feito no resto do mundo. No entanto, a liderança chinesa afirmou já que a estratégia é "sustentável" e "deve ser mantida".
Joerg Wuttke, presidente da Câmara de Comércio da União Europeia na China, apontou para um "reajuste completo" da visão que as empresas europeias têm do país. "As empresas enfrentam cada vez mais um ambiente em que a ideologia se sobrepõe à economia", descreveu.
Para Wuttke, a política de 'zero casos' incorpora o "afastamento da China do resto do mundo", algo que se verifica também nos planos industriais e para o setor tecnológico de Pequim, à medida que a rivalidade com os Estados Unidos se intensifica.
"Vivo na China há 40 anos e nunca vi nada assim", observou o empresário.
A câmara de comércio estimou que pelo menos metade dos expatriados europeus deixou o país desde o início da pandemia, prevendo uma aceleração desta tendência.
Jay Ahn, fundador da For Teach Recruiting, agência de recrutamento de professores estrangeiros para escolas internacionais com sede no sul da China, identificou "perda de esperança" entre os expatriados. "Estamos no terceiro ano da pandemia e parece que a tendência é para piorar", explicou à Lusa.
Ahn destacou dois eventos este ano como a "'gota de água que fez o copo transbordar' para muitos estrangeiros": os bloqueios de Xangai, a mais cosmopolita cidade da China, e de Sanya, o destino favorito para turismo de sol e mar no país.
A implementação dos bloqueios na China é altamente rigorosa. Os residentes podem ficar durante meses impedidos de sair de casa. Relatos sobre escassez de alimentos e de bens de primeira necessidade são frequentes. A estratégia obriga também ao isolamento de todos os casos positivos, incluindo assintomáticos, em centros de quarentena - instalações improvisadas, com as camas distribuídas num espaço comum, sem chuveiros, e com uma casa de banho para centenas ou até milhares de pessoas.
Em julho passado, George Ihan, um britânico de origem turca, viajou para Sanya para "desanuviar", após o bloqueio de dois meses de Xangai, mas, ao fim de três dias, acabou retido na cidade balnear, com a mulher e dois filhos, após as autoridades locais terem detetado ali um surto.
"Nós decidimos sair de Xangai depois do fim do bloqueio, mas agora estamos arrependidos, frustrados e zangados", descreveu então à Lusa. "Isto aniquila qualquer sensação de liberdade", disse.
Iham disse "gostar muito" de viver na China, mas admitiu que "nos últimos 3 anos, as restrições tornaram-se desconfortáveis".
"Acho que as pessoas se começam a questionar se esta é a política certa", resumiu.