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Mobilidade amputada

Há umas semanas, no cumprimento do extenso “calendário do espetáculo” da Semana Europeia da Mobilidade, a Praça do Município no Funchal – a tal majestosa praça que a Câmara vai esventrar para meter automóveis como toupeiras – transformou-se num “stand” de veículos elétricos. Quis o destino que eu lá estivesse a passar aquando do ritual de abertura, que inclui o ajuntamento dos altos sacerdotes do templo, para assistir ao vivo e a cores, à chegada do altivo representante da PSP, numa viatura preta, turbo-diesel (cujos gases poluentes estão muito aquém da conformidade NORMA EURO 6) e com motorista.

A presença do motorista numa ação de sensibilização pela mobilidade sustentável, não é um elemento neutro, como aparenta ser. Confere mais dignidade ao ato, e um entronizamento à entidade transportada, complementada pela cor negra da viatura que absorve luz e a atenção. A baforada de fumo negro do escape, é apenas um adorno como uma flor de caule decepado numa jarra, que adoça e perfuma o momento da fama e estatuto que se dilui no negrume da viatura. Ouso mesmo concluir, que esta sua diligente função de conduzir o chefe, mesmo numa curta distância, deve estar fora da rubrica “gratificados” na folha de vencimento…

Se houvesse multas, taxas e coimas pelo ridículo, o Estado arrecadava imensa receita e desonerava-nos de ir tanto ao bolso, mas, a nossa vida não teria a mesma emoção, ao nos vermos privados de circo.

Na verdade, não percebo o que temos nós madeirenses e porto-santenses, para celebrar ou comemorar na “semana europeia da mobilidade”. Continuamos a mendigar cabisbaixos e de forma reverencial o subsídio social de mobilidade, subjugados a uma catrefada de papéis e perda de tempo. Somos obrigados a adiantar valores exorbitantes para nos deslocarmos entre as distintas parcelas dum país fisicamente descontinuado, cuja Constituição esclerosada simula garantir “continuidade”. Fazemos Portugal no meio do Atlântico, mas o centralismo de Estado mantém-nos muito mais periféricos que a geografia física, a começar no modo como nos movimentamos entre as ilhas e o continente.

Com o advento da Autonomia, as ilhas perderam a categoria de adjacência, mas a portugalidade insular, essa, mede muito mais que os mil quilómetros de mar que distam estes portugueses periféricos da classe iluminada de Lisboa.

Por isso, a mobilidade para os insulares é na verdade, uma quimera. Sair de avião para o resto do país, é a assunção de que somos mesmo o “resto”, com uma promessa de maçada em gesto de reverência. A equivalente saída marítima é apenas uma impossibilidade, pois a nossa via marítima termina no Porto Santo. Somos portugueses amputados com sal na pele.