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Não há idade para deixar de continuar a doer

Nem que seja aos 90 anos quem foi vítima de abuso merece respeito e justiça

Falar de abuso em crianças ou jovens é falar de sofrimento profundo com graves consequências para o seu desenvolvimento. Não podemos olhar para a realidade do abuso sexual sem pensar na dor que acompanha estas crianças todos os dias da sua vida. Falo do que sei, porque as ouço em vários momentos das suas vidas. A idade ou o tempo que passou não amolece a ferida nem as consequências do que a história deixou. Não há idade para deixar de continuar a doer.

Habitualmente quem abusa é alguém em quem se confia, um cuidador, alguém com quem era suposto partilhar amor, dar e receber. O jogo emocional que medeia o abuso é tão subtil e perverso que leva as crianças a sentirem-se durante muito tempo corresponsáveis pelos momentos vividos a dois. Há um clima de segredo entre uma criança, emocionalmente frágil, e um adulto da sua confiança que estabelece com ela uma falsa ideia de comprometimento e decisão conjunta. Faz parte do jogo a manipulação, a chantagem, e o reforço da corresponsabilidade dos momentos vividos, imputando culpa aos motivos do abuso. A criança é orientada para acreditar que os seus naturais movimentos de afeto foram a razão de tudo o que aconteceu e que só foi assim porque ela quis. Este jogo perverso faz com que a criança, ou jovem, cresça sentindo-se culpado, responsável, “pecador” e por isso não digno de pedir apoio e ajuda.

Percebemos que os abusadores são pessoas emocionalmente perturbadas, doentes que precisam de ajuda, tratamento, para poderem alterar o seu registo de funcionamento. Contudo, são habitualmente pessoas socialmente muito competentes com características de personalidade que não levantam suspeitas. Tantas crianças, que em desespero pedem ajuda, são muitas vezes castigadas e consideradas mentirosas por “mancharem a honra “ de adultos “moralmente intocáveis”. O abuso tende a manter-se, num silêncio cada vez mais aflitivo.

O caminho é estar atento e intervir o mais precocemente possível junto das vítimas e dos abusadores. O tempo não apaga as memórias. Hoje a lei está presente e abuso sexual é um crime público. A saúde mental tem resposta para as crianças para os jovens e para os adultos que ainda mantêm viva a criança abusada. Também existe resposta para os abusadores.

Estar atento não é apenas esperar que nos peçam ajuda é muito mais do que isso. É olhar, ser empático entender sinais e querer ouvir. Não se pode continuar a empurrar responsabilidades, descartando o que nos incomoda ou assusta ou mesmo não queremos ver. Somos corresponsáveis pelo bem estar das crianças e jovens da nossa vida, e os que fazem parte da nossa comunidade também nos pertencem. Não é preciso ter medo ou vergonha de apontar o dedo a pessoas ou instituições quando estas comprometem a saúde mental dos lugares onde vivemos.

Nem que seja aos 90 anos quem foi vítima de abuso merece respeito e justiça e nós só podemos agradecer a coragem de terem sobrevivido e de nos ajudarem a continuar atentos e proactivos na prevenção de novos casos. Essa é a nossa preciosa colaboração.