Dever de seriedade
Muitos pedem bom senso mas cultivam hipocrisias sem perdão
Num contexto social intoxicado pelo excesso de comentário, muitas vezes gerado com o intuito de promover narrativas potencialmente corrosivas, embora destinadas a desviar atenções e a ofuscar a crueldade dos factos, não podem passar sem reparo todos aqueles que se multiplicam em desculpas, em apelos ao bom senso e às ameaças de gritos estridentes, mas que nas suas vidas, pródigas em hipocrisias, fazem bem diferente do que apregoam.
Os que acham que os 424 testemunhos de casos de abusos de menores no seio da Igreja Católica em Portugal - número validado pela Comissão Independente que, para os doutos que tudo resumem à aritmética, alegadamente "não parece particularmente elevado face à provável triste realidade" - não têm a mínima noção da dolorosa realidade, dos distúrbios transversais que o crime causou aos inocentes, mesmo que a Justiça, demasiado lenta e dada a prescrições, venha um dia a ser feita.
Os que julgam que as denúncias de abusos sexuais de menores pela Igreja Católica, por sinal, tão históricas quanto encobertas, sem sinal de arrependimento e, pior, sem consequências para os prevaricadores, devem ser desvalorizadas ou encaradas com cepticismo, não merecem perdão por muito que se multipliquem em actos de contrição de circunstância e raramente disponibilidade imediata para deixar vago o lugar do pecado.
Os que argumentam não haver obrigatoriedade na denúncia às autoridades civis dos abusos, para que assim possam ser legitimamente ignorados pelas autoridades canónicas, dificilmente são passíveis de redenção, dado a elevada propensão para a prevaricação consentida.
Os que tornam o abominável abuso sexual das crianças num crime exclusivo da Igreja revelam um grave distúrbio que afecta a memória, embora se perceba ser mais fácil fazer sangrar uma instituição secular do que um ou outro governante benemérito ou um artista com legiões de fãs.
E que dizer dos que atacam a TAP por um acto de gestão isolado, relacionado com o ‘renting’ da frota que era de marca francesa e passa a ser alemã, mas que toleram os preços pornográficos praticados nas rotas domésticas em Portugal? E que dizer dos truques na manga que visam apagar do palco mediático um protagonista que está em pé de igualdade com outro por razões claramente políticas?
Importa cultivar a seriedade em larga escala e fomentar a esperança que o cardeal madeirense José Tolentino Mendonça resumiu na ‘A Estrela’:
“Precisamos de uma estrela que desarme a noite
Precisamos de uma palavra transparente que nos ofereça a possibilidade de um começo
Precisamos de uma esperança que se propague
Precisamos de lugares límpidos fora e dentro de nós
Precisamos de reencontrar uma vida onde a prece e o louvor voltem a ser possíveis
Precisamos de um gesto para dizer uma alegria maior do que a alegria
Precisamos de acolher o dom e o seu equilíbrio difícil e leve
Precisamos de alguém que em pleno inverno nos ensine a trazer no coração a primavera a arder”.