Tecnologia permite a Xi Jinping aspirar a nível de controlo totalitário inédito na História
Chang não ousa atravessar a rua fora da passadeira desde que, da última vez, foi imediatamente notificado de multa, via telemóvel; Yuan conduz com cautela, sabendo que uma infração pode-lhe custar prontamente pontos na carta.
A liderança em redes de Quinta Geração (5G), reconhecimento facial, Inteligência Artificial ou 'big data' [análise de dados massiva] colocou a China na vanguarda da transformação digital, permitindo a criação de cidades inteligentes, sistemas de mobilidade compartilhada ou o desaparecimento do dinheiro físico, mas serviu também para reforçar o caráter totalitário do regime chinês, sob a liderança de Xi Jinping, que deve garantir este mês a continuidade no poder.
A vigilância começa na rua: as cidades chinesas têm uma média de 370 câmaras por 1.000 habitantes, segundo o instituto de pesquisa Comparitech. É de longe o rácio mais elevado do mundo.
Esta vasta rede está dotada de tecnologia de reconhecimento facial, que é complementada com a instalação nas ruas e bairros de coletores de números internacionais do subscritor móvel (IMSI, na sigla em inglês) e os números de série eletrónicos (ESM) dos telemóveis - cada dispositivo tem os seus próprios números -, permitindo associar o rosto ao telemóvel de quem passa.
"As pessoas passam e deixam uma sombra; o telefone passa e deixa um número. O sistema conecta os dois", lê-se numa brochura de uma empresa chinesa que desenvolve aquele tipo de sistema de vigilância para esquadras de polícia locais.
Tom Van Dillen, gestor em Pequim da consultora Greenkern, explica à agência Lusa que a sociedade chinesa entrou numa 'era pós-privacidade', de forma voluntária, visto que a implementação de novas tecnologias pervasivas tornou também a vida mais conveniente.
"Quanto mais privacidade uma pessoa está disposta a perder, mais conveniente a sua vida se torna", resume. "O que realmente me impressiona é que a necessidade de conveniência tornou-se uma parte tão elementar de como as pessoas entendem a liberdade, que elas estão dispostas a sacrificar a sua própria privacidade", explica.
A política de 'zero casos' de covid-19 da China reforçou o aparelho de vigilância. As autoridades tornaram obrigatório o uso de uma aplicação para aceder a locais públicos ou residenciais. O utilizador deve primeiro digitalizar o código QR, uma versão bidimensional do código de barras, colocado na entrada de todos os edifícios, assim como nos transportes públicos ou táxis. Todos os movimentos do utilizador ficam assim registados na 'app'.
A Internet do país é também alvo de controlo restrito. O Weibo ou o Wechat, as principais redes sociais da China, empregam milhares de moderadores de conteúdo e bloqueiam automaticamente qualquer palavra politicamente sensível, como o nome de Peng Shuai, a tenista que acusou um antigo alto quadro do PCC de agressão sexual, no ano passado. Vários portais estrangeiros, incluindo Facebook, Twitter ou Instagram, estão banidos da rede chinesa.
"Hollywood devia fazer um filme sobre isto", comenta à agência Lusa um matemático indiano e especialista em 'big data', durante uma visita à China. "A quantidade de dados acumulados e a falta de regulação criaram aqui um mundo novo", observa.
Xi tem "semelhanças" com os líderes totalitários do século XX, mas agora com acesso a ferramentas tecnológicas que não existiam então, considera o cientista político Francis Fukuyama, conhecido por prever o triunfo do liberalismo político e económico, após o colapso da União Soviética.
"Ele aspira a um nível de controlo totalitário sobre a sociedade chinesa inédito na História da Humanidade", diz. "Estaline ou Mao [Zedong] não podiam olhar diretamente para os movimentos, palavras e transações do dia-a-dia de cada um dos seus cidadãos, da maneira que o Partido Comunista Chinês (PCC) pode, em teoria, fazer hoje".