Abusos sexuais não acontecem só aos outros e para denunciar é preciso promover diálogo
Os abusos sexuais não acontecem só "aos filhos dos outros", há muitas formas de violentar uma criança além da violação, geralmente o agressor é alguém próximo e para que a criança sinta vontade em denunciar é preciso promover diálogo.
Estes e muitos outros factos, mas também mitos, e orientações para pais, mães e cuidadores constam do mais recente livro do presidente da associação Quebrar o Silêncio, de apoio a homens e rapazes vítimas de abuso sexual, que vai ser apresentado na quinta-feira, em Lisboa.
O livro tem o título "De que falamos quando falamos de violência sexual contra crianças - Guia de prevenção com orientações para mães, pais e pessoas cuidadoras" e, em entrevista à agência Lusa, Ângelo Fernandes explicou que há muitos mitos associados a esta questão, desde logo o facto de muitos pais, mães e cuidadores acharem que este "é um problema que só acontece aos outros".
"Essa é uma ideia perigosa porque cria uma falsa sensação de segurança", alertou, sublinhando que muitos pais acham que este fenómeno só acontece em determinados contextos ou dento de determinados grupos sociais.
Outro dos mitos tem a ver com os pais acreditarem que o filho lhes contaria se fosse vítima de abuso porque têm um contexto familiar de proximidade e diálogo.
"Nós sabemos que não é essa a realidade. As crianças não partilham, não é comum as crianças partilharem histórias de abuso e as poucas que o fazem, muitas vezes quando o fazem, essas histórias não são reconhecidas como partilha, muitas vezes são descredibilizadas ou passam despercebidas", apontou.
Ângelo Fernandes, ele próprio vítima de violência sexual em criança por parte de um amigo da família, chamou a atenção que "estes mitos criam uma falsa sensação de segurança nos pais" que acreditam que fizeram tudo o que estava ao seu alcance.
O presidente da 'Quebrar o Silêncio' recordou que, segundo estimativas do Conselho da Europa, uma em cada cinco crianças foram, são ou vão ser vítimas de violência sexual, um dado que quando apresenta aos pais e mães nas suas formações os faz compreender que "afinal não é uma realidade assim tão distante da sua".
"Outro mito que pode acontecer é [achar] que muitas vezes são estranhos que abusam de crianças, quando sabemos que isso não é verdade. Na maior parte dos casos o abusador é da própria família da criança ou então tem uma relação próxima", apontou, acrescentando que também acontece com frequência acreditar-se que o abuso só acontece uma vez e que a criança não terá memória disso.
A vontade de escrever este livro, explicou à Lusa, veio precisamente das muitas formações que tem dado a profissionais e onde constatou que as dúvidas mais frequentes eram colocadas não na perspetiva profissional, mas enquanto pais e mães, e que também entre estas pessoas "havia muita desinformação".
Apesar de já existirem outros recursos sobre este tema, Ângelo Fernandes disse entender ser importante um livro em que o foco estivesse nos pais e na prevenção e que não responsabilizasse a criança pela denúncia do abuso.
Apontou que muitos pais e mães "não têm noção da real profundidade ou da dimensão da violência sexual contra crianças" e que procurou, por isso, dar orientações e ferramentas para cada família aplicar na sua dinâmica familiar.
"Para isso é preciso reconhecer, por exemplo, que a prevenção do abuso sexual não se consegue numa única conversa ou num único dia. É um processo que é continuado, desde que a criança começa a ser educada", alertou.
Defendeu que é preciso que em cada haja um "ambiente propício para o diálogo", que "não haja tabus relativamente à sexualidade" e que a criança sinta que pode colocar qualquer dúvida.
Relativamente a orientações mais específicas, Ângelo Fernandes sublinhou que "é fundamental" ensinar às crianças os nomes corretos da genitália, saber identificar o pénis, os testículos, a vulva ou a vagina.
"Lembro-me do caso de uma menina que tinha dito, no contexto de escola, que o tio lhe tinha tocado na bolacha e esta partilha passou despercebida até a professora mais tarde tomar consciência de que em casa desta menina a família usava o termo bolacha para referir-se à vagina", contou, acrescentando que se a menina tivesse sido ensinada a usar o termo correto, a partilha teria sido encarada com outra importância.
Destacou também a importância da educação para a sexualidade, como um "percurso que é importante não só para o desenvolvimento da criança, em termos da saúde, da saúde sexual, mas também como da prevenção de situações de violência sexual".
Sublinhou que o "silêncio só beneficia os abusadores" e salientou que quanto mais se falar nestas questões e normalizar a discussão sobre elas, mais fácil é prevenir ou detetar qualquer situação anómala.
Destacou também que é importante esclarecer que violência sexual não remete apenas para violação ou atos penetrativos, dando como exemplo que se um abusador de masturbar e ejacular à frente de uma criança, isso também constitui uma forma de abuso sexual apesar de não ter havido qualquer contacto físico com a criança.
"As pessoas têm que ter consciência que há diferentes formas de violência sexual, umas com contacto físico, outras sem, mas que importa saber o impacto traumático que teve na vítima", alertou.
No caso de uma criança partilhar uma história de abuso, Ângelo Fernandes defendeu que é importante validar o sofrimento da criança, valorizar a partilha e elogiar a coragem que teve ao fazê-lo, evitando entrar em pânico, uma vez que isso pode fazer com que a criança se arrependa de ter falado.
Disse ainda que no caso de uma denúncia formal, importa pedir logo ajuda a um psicólogo especializado em violência sexual e trauma para aumentar a probabilidade de que o trauma não venha a ser prolongado ao longo da vida.
A apresentação do livro acontece na quinta-feira, dia 13, na Fnac do Chiado, em Lisboa.