Crónicas

O intervalo

A sorte era ser rapariga, mais uma, numa turma onde havia caído apenas um rapaz. As turmas de letras eram assim, quase como se estivesse num colégio feminino

Quando as açucenas cor-de-rosa enchiam o chão dos pinheiros já Outubro ia a meio e eu levava 15 dias de balanços nos autocarros e o corpo feito às travagens, à gente que entrava e se espremia para caber melhor e não perder a viagem. O povo não gostava de esperar, mas não se sabia arrumar dentro do horário, que era dos novos, com bancos virados ao contrário e mais lugares de pé do que sentados. E o muito que se falara disso lá por cima, no Laranjal, que não podia ser, que se fizesse desdobramentos para haver bancos para todos.

Não podia ser, mas foi e as senhoras mais velhas aguentavam-se como podiam, faziam equilibrismo nas descidas; nas subidas faziam impossíveis para não extraviar as compras nos solavancos. E, em 10 minutos, ouviam-se risadas, que, pronto, quando não se pode mudar, sempre se pode rir. Se em 15 dias eu já sabia onde encostar e para onde inclinar o corpo nas curvas, quem ia trabalhar sabia de cor todos os tropeções, todos os desvios e buracos do caminho.

E fora mais simples habituar-me ao autocarro do meio dia e meio do que ao secundário e à turma de desconhecidos onde aterrara, aos professores de ar sisudo e ao labirinto de corredores e escadas. A mim os lugares novos pareciam – e ainda parecem – um emaranhado de corredores, de caminhos, saídas e entradas semelhantes, a maioria não vai dar a onde se quer. Assim era eu, aos 15 anos com a minha mochila vermelha no colo, a cara enfiada na janela e a preparar-me para sobreviver a uma tarde de aulas.

Lembro-me que, todas tardes, corria pela escada do Girassol acima, era mais fácil, dava a impressão de ter pressa e não falta de jeito e uma enorme incapacidade para socializar. Não me quis sentar à frente, nem nas pontas e escolhi o meio da sala sem perceber que ficava sempre no ângulo de visão dos professores. O melhor era ser transparente ou invisível, mas com o meu tamanho e a pouca habilidade, mais a mochila pesada de livros e cadernos não era fácil.

A sorte era ser rapariga, mais uma, numa turma onde havia caído apenas um rapaz. As turmas de letras eram assim, quase como se estivesse num colégio feminino. Nas salas, nos corredores, sentadas nos bancos e no bar havia raparigas. Umas altas, baixas, mais gordas e mais magras, a maioria normal, com os cadernos debaixo do braço, de calças de ganga, camisa larga e camisola em cima dos ombros. E eu lá no meio sem saber o que fazer no intervalo, se ia à janela para ver de cima o movimento da rua ou se metia conversa com alguém, a tentar encontrar um sorriso, uma cara simpática.

Sempre com aquele desconforto colado à pele, mais ou menos confusa, sem de não saber bem onde ficava a casa de banho das raparigas e como é que se ia dar aos campos de andebol do liceu para as aulas de Educação Física. E a processar o que os professores diziam nas aulas, a tentar encontrar alguém para dividir e partilhar a angústia de ser um estranho num lugar estranho. E dizem que a experiência ensina, que aprendemos estratégias para nos defendermos na vez seguinte. É possível, mas não comigo. Todas as vezes que dou por mim num lugar novo volto a ser a miúda de 15 anos sem saber o que fazer no intervalo das aulas.