Crónicas

A Democracia dá trabalho

E note-se que Portugal, ao contrário de tantos países, não desenvolveu o voto electrónico e recorre a cadernos eleitorais arcaicos e de actualidade muito duvidosa

Um castelo de cartas

Eleições no fim do mês, infecções a galopar, e continua a incógnita quanto ao voto dos confinados.

Marimbemo-nos para os derivados da pandemia. Para quanto dura o isolamento, para se o isolamento se justifica, ou se o contágio é Delta ou Omicrón.

Reconheça-se que um Estado – democrático – não pode proibir um cidadão de votar, nem obstruir exageradamente esse exercício. Admita-se que o voto por correio, ou antecipado, é imprestável para os votantes que testam positivo nas vésperas do acto eleitoral. E note-se que Portugal, ao contrário de tantos países, não desenvolveu o voto electrónico e recorre a cadernos eleitorais arcaicos e de actualidade muito duvidosa. Dá-se de barato o resto, como a menor intensidade da nova variante, ou o facto de dia 30 votarem, seguramente, muitos infectados que desconhecem essa condição.

Tanto basta para concluir que os confinados vão mesmo votar. De máscara, talvez numa mesa própria, com delegados também infectados, ou vestidos à Chernobyl. Mas vão.

Se alguém os tentar impedir, convinha que saltasse de algum lado um Presidente, ou um Tribunal Constitucional. Se nada disso acontecer, se ordeiramente se aceitar que os confinados viajem quilómetros para votar, ou de outro modo sejam incentivados a ficar em casa, resta resignarmo-nos com o facto de o país se ter definitivamente convertido numa democracia estritamente coreográfica.

Por chato que pareça, convém lembrar que os regimes políticos nascem de crise, combate e risco. Um risco corporal, e não intelectual. O atrevimento de um encontro, e não a indiferença de uma mensagem. A democracia dá trabalho e exige compromisso. Dar a vida pelo voto não é um arroubo romântico, mas uma realidade histórica, a que Portugal foi muito excepcionalmente poupado. Se o voto dos outros não vale a inconveniência e o residual perigo de conviver com alguns mascarados enquanto desenham uma cruz, é porque não vale nada. Se não vale nada, pouco importa fingir o resto.

Seria até adequado que o voto seguisse por correio. Tratava-se, afinal, de um castelo de cartas.

Djokovices

Optar por não se vacinar não é grande figura para o tenista número 1 do Mundo. Sobretudo quando estava em jogo o Open da Austrália, um Grand Slam que podia selar a superioridade numérica de Djokovic sobre os rivais Federer e Nadal, actualmente com 20 majors cada. Mas Djokovic lá embarcou para a Austrália ao abrigo de uma presumível excepção médica. Aí chegado, acabou tratado como todos os não vacinados no país dos cangurus: isolado num hotel de três estrelas, a contar formigas e a comer sandes de “vegemite”. Os pais montaram uma tempestade mediática, onde apelaram ao patriotismo sérvio – uma ideia com a força dos 16 anos –, e de novo advertiram a sociedade contra a figura tenebrosa e sádica do “pai de atleta”.

A história divide. Não só entre fãs e críticos, mas também entre adeptos das regras e defensores de uma flexibilização. O essencial parece porém escapar. É que a Austrália sabia que Djokovic não estava vacinado. Podia tê-lo barrado à partida. Ao que parece, acenou-lhe com um engodo, para depois esmagá-lo com a força da lei, e fazer dele exemplo num pelourinho exibicionista e degradante.

A anti-vacinação é um fenómeno complexo, próprio destes tempos desconfiados, populistas e pós-factuais. Mas se é para combater maluquinhos, convém não lhes dar razão. A Austrália devia ter vergonha.

Cercas sanitárias

Vem-se falando na necessidade de criar uma cerca sanitária em torno do Chega. O ónus dessa edificação incide, ao que parece, sobre o PSD, que deve recusar formar governo com as criaturas, mesmo se ganhar as eleições. Implicitamente, a Esquerda quer com isto dizer o seguinte: a Direita deve abdicar de governar, mesmo se no seu conjunto tiver mais votos do que a Esquerda, visto que os votos no Chega estão fora do “eixo democrático”.

A ideia, de tanto repetida, parece sensata. Tanto que o óbvio precisa de saltar para cima da mesa. Se a Esquerda está tão preocupada com o populismo autoritário, tem bom remédio. Basta que o PS se comprometa a apoiar um governo de maioria relativa do PSD, caso este ganhe as eleições. Se estiverem mesmo preocupados, nem precisam de participar no executivo. Basta que aprovem de vez em quando o Orçamento, e naveguem por quatro anos na hipocrisia a que condenaram os muito democráticos Bloco e PCP durante a Geringonça. Poupavam ao PSD um dilema, e ao País a repetição do desastre de ser governado pelos extremos quando o povo vota ao centro.

Não querem?

Fascistas!

Um mau serviço

É muito instrutivo assistir aos debates entre os cabeças de lista. Esta esgrima cronometrada, onde cada candidato fala dez minutos para que cada comentador fale uma hora, pode ser bom entretenimento, mas é uma forma deprimente de desencantar um Primeiro-Ministro. A colagem de impressões, a pressão em directo, e a fraqueza na moderação incentivam à frase quente, e proporcionam um espectáculo próximo do reality show. O modelo favorece, provavelmente, as audiências, mas favorece também um tipo de partido e um tipo de candidato. Como um mosquito para o lume, a comunicação social atrai-se por aquilo que a promete destruir. Presta, com sucessos destes, um mau serviço à democracia.