As correntes de ar
Eu queria um futuro onde pudesse ser eu, a miúda gordinha, distraída, que gostava de sentir o sol de Janeiro e odiava casacos de lã
O frio e a chuva metiam respeito lá por cima no Laranjal e, por isso, a minha mãe enchia-me de roupa não fosse apanhar uma pneumonia ou uma gripe ou outra doença qualquer que se pudesse transmitir pelas correntes de ar. E, por debaixo dos casacos de lã, havia uma camisola interior, mais umas collants grossas que desciam pelas pernas abaixo e não davam jeito quando entrava no autocarro.
O resto também atrapalhava e fazia transpirar, além de provocar um formigueiro na pele quando, na hora do almoço, fazia fila na paragem à espera do horário do Jamboto. A minha mãe fazia questão de lembrar que de frio, de doenças e do que era melhor para todos nós sabia ela. E, certa disso, eu transpirava, puxava a meias para cima a cada cinco minutos e sonhava com o futuro, o meu futuro e do qual seriam banidos todos os tecidos que davam comichão.
O calor aumentava dentro dos autocarros velhos, com as janelas empenadas, os estofos quentes. Era Janeiro, era Inverno e havia sol, um céu azul e o frio era mais um ideia, do que um facto. Uma ideia que existia na cabeça da minha mãe, das minhas tias e que me fazia sentir mais esquisita numa família de mulheres friorentas, magras, baixinhas e sempre consumidas pelas preocupações.
E a quem repreendiam por ser despreocupada e distraída, por viver com calor e comer com gosto. Os miúdos, os outros todos, iam ao médico para abrir o apetite, tomavam suplementos de vitaminas e tinham problemas, não era difícil transformá-los em preocupações. Eu não, cresci saudável, depressa e aprendi cedo
a esconder o medo, fosse do escuro, fosse o da escola nova ou, o pior de todos, fosse o medo de falhar.
Aos 10 anos, a minha mãe levou-me à escola para o 1º ano do ciclo e disse que, dali para a frente, iria todos os dias no autocarro e tinha nas mãos o futuro. Não me podia desviar e, para o sucesso, bastava passar de ano. Se falhasse, vinha para casa e não teria outra vida senão bordar, mas eu não queria. Eu queria um futuro onde pudesse ser eu, a miúda gordinha, distraída, que gostava de sentir o sol de Janeiro e odiava casacos de lã.
E foi a ideia do futuro que me fez aguentar o medo, as muitas vezes em que me senti estranha, uma peça fora do lugar e aquela solidão nos intervalos grandes ou os almoços às escondidas, com vergonha que alguém visse que não tinha dinheiro para ir a casa ou comer na cantina. Não tenho já a noção de quanto foi preciso para enfrentar tudo isso aos 10 anos, longe de casa, decidida a não falhar, decidida a não ser mais uma preocupação para consumir energia à minha mãe e às minhas tias. Para isso bastava o frio, as pneumonia e as doenças que se transmitiam pelas correntes de ar.