Crónicas

Carrinhos de choque do tempo que corre

FOTOGRAMAS

A velocidade a que os carrinhos passaram perante a objetiva de Pestana nesses dias de finais de dezembro ou inícios de janeiro da década de 1960, resultaram no seu “arrastamento” na emulsão fotosensível

Este primeiro texto de 2022 inicia-se em resquício de festas, com duas imagens do parque de diversões que já na década de 1960 caracterizava no Funchal a celebração profana e as possibilidades de lazer e diversão associadas à memória coletiva desta quadra natalícia. As imagens são da autoria de João Pestana, fotógrafo e (nessa condição) marcante figura funchalense, que mereceu no ano que passou uma exposição retrospetiva no Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s. Consta que Pestana encarnava a persona do fotógrafo de rua à caça do instante icónico formulado em imagem técnica, deambulando pela cidade “moderna” com uma câmara ao peito.

A reflexão sobre a própria modernidade como época e experiência histórica, no âmbito da qual a fotografia surge e que ao mesmo tempo regista, é no pensamente de autores que sobre ela refletiram e, nomeadamente, do filósofo alemão Walter Benjamin, (autor não raras vezes referenciado quando a fotografia é tema), uma experiência de choque. Ora é precisamente assim que designamos os carrinhos que circulam em circuitos fechados nos parques de diversões, espaços em si mesmo tão característicos da própria experiência urbana, moderna e industrial. A vivência na urbe moderna é de choque na medida em que é repleta de estímulos muito exigentes para a percepção e atenção dos sujeitos, que então apreendem essa mesma vivência como uma míriade de fragmentos que por si velozmente passam, resistindo a uma apreensão globalizante. A velocidade a que os carrinhos passaram perante a objetiva de Pestana nesses dias de finais de dezembro ou inícios de janeiro da década de 1960, resultaram no seu “arrastamento” na emulsão fotosensível, não permitindo a identificação dos condutores visíveis no primeiro plano (e segundo), apesar de um deles encarar o fotógrafo, tendo obviamente tido, pelo menos instantes antes do momento do disparo, noção da sua presença. Aparente limitação técnica, a indefinição da imagem e o arrastar do movimento na fotografia tornou-se, provavelmente a partir das iconografias de corridas de carros do início do século XX do fotógrafo francês Jacques-Henri Lartigue, simbólico. Símbolo esse, desde logo do próprio movimento na fotografia, claro, e em acréscimo do frenesim dos múltiplos estímulos ou choques que pautam a singularidade da época industrial.

Também a época natalícia e festiva é ao longo do século XX atravessada por este tipo, repito-me, de experiência, que não terá sido invisível ao olhar de Pestana. Desde então, torna-se ainda mais acelerada pelos múltiplas incitações não apenas às formas de consumo de “coisas” mas à própria experiência (do choque) como produto ou possibilidade de consumo.

Se hoje a realidade digital em muito terá ultrapassado as formas de velocidade e estímulo do parque de diversões da década de 1960, no século XXI é ainda mais difícil reconhecê-lo como espaço privilegiado de encontro, convívio e namoro que terá cumprido então na sociabilidade da época. É isso que nos sugere a segunda imagem aqui reproduzida, fazendo eco aos testemunhos que escutei há já quase uma década atrás sobre encontros entre jovens nessa mesma década no famoso Parque Mayer, em Lisboa. Sobre o casal em frente à “atração” espacial, talvez algo se consiga saber ou reconhecer hoje. Sobre a particularidade do momento em que trocam olhares e porventura palavras, e sobre as próprias palavras trocadas e sentidos do encontro em questão, é menos provável que consigamos vir a saber alguma coisa. Ao volver o novo ano, é a imagem do deus romano Jano com cada uma das faces viradas para lados opostos que me advém à mente, como se um rosto estivesse imerso na memória para o futuro do instante que então se vive, mas que logo se afigura passado, e o outro indelevelmente imerso nas exigências do tempo novo que se impõe e sempre corre.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.