«Memória desocupada de quem não viu»
Não se consegue ter um número exato relativo aos milhões de vítimas desta rede de terror montada para vergar, explorar e exterminar em massa
Na semana em que se assinala os 77 anos da libertação de Auschwitz-Birkenau, uma turista foi detida e multada porque decidiu fazer a saudação nazi à entrada do campo, por baixo da infame inscrição «Arbeit Macht Frei – o trabalho liberta».
O gesto acontece no mesmo lugar em que cerca de um milhão de pessoas foram exterminadas, entre 1940 e 1945, e acontece no País cuja ocupação pelas tropas nazis, em 1939, desencadeou a II Guerra Mundial. Estima-se que, durante os quase seis anos da ocupação nazi da Polónia, foram assassinadas cerca de 4,8 milhões de pessoas polacas, judias e não judias. Este número não reflete o número de pessoas que foram enviadas de outros países para os campos de trabalho e extermínio criados no território polaco ocupado e que incluiu judeus, prisioneiros/as de guerra, oponentes políticos, membros da resistência, homossexuais, Testemunhas de Jeová, pessoas de etnia cigana, pessoas com deficiência e antissociais (criminosos/as).
O dia 27 de janeiro tornou-se símbolo e sinaliza o Dia Internacional pelas Vítimas do Holocausto, uma tentativa de não esquecermos que foi possível desenhar e implementar um programa de destruição maciça na Europa. Num texto publicado em 1945 e que está traduzido com o título «Culpabilidade organizada e responsabilidade universal», Hannah Arendt chama a atenção para o facto de «entre os responsáveis, em sentido amplo» pela disseminação de um tal programa, se dever «incluir os que se mostraram favoráveis a Hitler enquanto tal foi possível, os que o ajudaram a aceder ao poder, e os que o aplaudiram tanto na Alemanha como no resto da Europa.» São, por isso, os «responsáveis irresponsáveis» que não souberam ou quiseram ver e compreender o que tinham pela frente.
Não se consegue ter um número exato relativo aos milhões de vítimas desta rede de terror montada para vergar, explorar e exterminar em massa. Foram criados 27 campos principais e mais de 1100 campos-satélites pelo regime nazi ao longo do território conquistado na Europa. Trabalharam no controlo e extermínio de pessoas, nestes campos, mais de 60 000 homens e mulheres que não eram monstros. Numa entrevista datada de 1983 e que está publicada com o título «O Dever da Memória», Primo Levi, um dos sobreviventes de Auschwitz-Birkenau, testemunha que «havia de facto poucos monstros, poucos doentes mentais e torcionários, a maioria cumpria a disciplina com uma indiferença cansada. Não os encantava terem de matar as pessoas, mas eles aceitavam-no, eram o produto de uma escola.» Uma escola que foi exímia em criar «uma classe de subalternos» que entrava na engrenagem das SS «para fazer carreira, sem depois conseguir sair dela».
Esta indiferença relatada por Levi é também descrita por Hannah Arendt, que descreve as SS como sendo uma organização que não se apoiou «nem em fanáticos, nem em criminosos inatos, nem em sádicos, mas sim na normalidade das pessoas que trabalham e têm família». A autora, judia alemã, também ela resistente e alvo do ódio difundido pelo nazismo que alastrou pela Europa e que elegeu determinados grupos para bodes expiatórios dos males de então, lembra que as dificuldades de cada época são matéria inflamável para transformar o ser humano em «homem de massa (…) instrumento de todas as loucuras e de todas as crueldades.»
Regresso à saudação nazi feita pela turista holandesa às portas de Auschwitz-Birkenau. Sublinho que também a Holanda, apesar de ter declarado a sua neutralidade no início da II Guerra Mundial, esteve ocupada pelo regime nazi entre 1940 e maio de 1945. Da comunidade judia holandesa, estimada em cerca de 140 mil pessoas durante o período da ocupação, apenas sobreviveu 38 mil pessoas.
A saudação nazi por parte de uma mulher holandesa que visita o Museu de Auschwitz-Birkenau é a caricatura de um tempo em que a memória sobre o Holocausto tende a desaparecer – e isso constitui a possibilidade de regresso despudorado a tempos perigosos. No passado dia 27, nenhum dos grandes jornais nacionais, nem tão pouco os regionais, dedicou grande espaço ao «Dever de Memória». A alguns passou mesmo completamente ao lado.
Primo Levi assumiu sempre a importância de fixar o que aconteceu porque «nós, os sobreviventes, somos testemunhas e toda a testemunha é obrigada, mesmo por lei, a responder de forma completa e verídica.» E cada testemunho na primeira pessoa impossibilita a negação do que aconteceu. No entanto, na entrevista datada de 1983, Levi expressava sentir que, quando ia às escolas testemunhar o que tinha vivido no campo de extermínio, o seu relato «já não toca[va] as crianças» e a sua linguagem parecia já insuficiente. O mesmo acontece com aquela turista que fez a saudação nazi por baixo da infame inscrição, indiferente ao facto de aquelas portas testemunharem também uma parte da história de horror que assolou também o seu país. Chamou-lhe de «brincadeira estúpida».
Por toda a Europa, o «Dever de Memória» tem perdido terreno para os discursos fáceis e populistas que se alimentam de intolerância contra determinados grupos considerados minoritários. É por isso urgente tornarmos a escutar com a devida atenção os testemunhos de quem viveu a barbárie na pele, é fundamental priorizar o aviso de Hannah Arendt que, em 1945, alertou para o facto de que é «a ideia de humanidade – uma humanidade que não exclui de si nenhum povo e a nenhum atribui o monopólio em falta» que nos poderá ajudar a fazer frente ao mal sem limites de que somos capazes.
Não resisto a invocar uma parte do poema que deu título a este texto, e que é da autoria de Inês Fonseca Santos:
«Não será assim tão longo o mundo
Que não nos voltemos a fitar:
Os pés assentes no carvão dos corpos,
Os grandes animais por companhia.
Ah, os grandes animais: não o cavalo
Que cospe quem o monta, mas a barata
Que silenciosamente escapa
Ao pé que a pisa.»