Voto (in)útil
Dediquei estas minhas duas últimas crónicas à questão do voto, porque tenho pela democracia uma veneração exultante, quase religiosa
1. Disco: aos 67 anos, Elvis Costello recomenda-se. “The Boy Named If”, é um quase retorno ao que nos habituámos a ouvir nos anos 80. A música de um jovem feliz em início de carreira. Ficamos com a ideia de que Costello foi à gaveta desenterrar temas que estavam por ali esquecidos. E ainda bem que o fez.
2. Livro: “A Neblina do Passado”, de Leonardo Padura, é um romance lento, suave, embora se sinta, no fundo, a tensão que caracteriza os livros do autor. Gosto imenso da prosa colorida e expressiva de Padura. As descrições culinárias, o modo como nos faz “ouvir” a música com que ilustra o que escreve e, em particular neste livro, a maneira como fala de literatura, de outros livros. Mario Conde, a personagem que Padura ofereceu ao mundo, volta agora após ter deixado a polícia. Dedica-se à compra e venda de livros. Mas a vida não o deixa sossegado.
3. Votar é um direito e um dever. Ninguém é obrigado a cumprir um direito que lhe pertence, mas é de bom-tom cumprir com os deveres que temos. Gostemos ou não. Votar tem a ver com escolhas. Sempre que vamos para eleições, somos bombardeados com argumentos que têm a ver com a utilidade do voto. Os que alternam entre o mesmo e o mais do mesmo, são useiros e vezeiros em apelar ao voto útil. E lá vamos, sem muita convicção, participando nesse alterne que pretende tudo mudar, para que tudo fique na mesma.
Deviam, um dia, experimentar votar com o coração, com a convicção, votar no que acreditam ou que vos faz mais sentido. O exercício do voto não tem a ver com o ganhar ou perder. A democracia não encerra uma guerra, nem é um jogo de futebol. Há pequenas vitórias para as quais podemos contribuir, há pequenas soluções que se podem integrar, com o tempo, num todo que prepare o futuro.
Nós não temos que votar útil. Não temos que fazer como os comunistas, instruídos nos idos dos anos 80 a fechar os olhos e a votar em Mário Soares. Afastemos o fanatismo ideológico e o dogmatismo das nossas escolhas. Não há voto útil que supere o votar em consciência e no que concluímos ser o melhor para todos. Seja lá em quem for.
O argumentário é sempre o mesmo, votar em A para que B não vença. Não interessa se nos identificamos mais com C ou D. O que interessa é derrotar um dos contendores. Querer esta categoria de voto, apoiado em fundamentos ocos, ajuda também a que a abstenção aumente, pois o eleitor é confrontado com o facto de parecer que só há duas hipóteses de escolha. No entanto, o boletim de voto propõe, nestas eleições, 18 opções, se contarmos com o voto em branco e o anulamento do boletim.
Esta treta do voto útil leva-nos a esta bipolarização negativa entre duas coisas que são iguais: os socialistas rosa e os socialistas laranja. Não diferem nem na forma, nem no conteúdo.
Não há nada pior do que votar útil e perder. A noção de desperdício, de que o voto afinal não serviu de nada. Um profundo arrependimento. Há estudos efetuados que demonstram esse desgosto, esse lamento. Nas eleições seguintes a ponderação de ficar em casa aumenta, junto destas pessoas.
Votar bem. É isso que interessa. Votar bem, que significa fazer a sua escolha de um ponto de vista informado e com o olhar voltado para o bem comum. É isso que devemos uns aos outros. Votar com calma e serenidade, usando a nossa capacidade de análise e de crítica. Sem raiva, ódios ou preconceitos. Sem utilidades duvidosas que não são alternativas a coisa nenhuma.
4. Dediquei estas minhas duas últimas crónicas à questão do voto, porque tenho pela democracia uma veneração exultante, quase religiosa. Considero os actos eleitorais como o equivalente à comunhão.
Ouço, por aí, muitas pessoas bem-intencionadas a dizer que se recusam a votar. Cada qual faz com o voto aquilo que quiser. Democracia “oblige”. Do mesmo modo que tenho a liberdade de concluir, o que eu quiser, sobre essa atitude. Tenho para mim a recusa da utilização da faculdade de votar como um crime de lesa democracia. Como uma não participação. E como tal darei sempre muito mais importância à opinião de quem participa, do que de quem o não faz. As atitudes ficam com quem as toma e a minha opinião fica comigo.
5. Bernard-Henri Lévy é um dos pensadores, da actualidade, mais clarividentes. Na semana passada escreveu na “La Règle du Jeu” um artigo cujo título dispensa tradução: “Putin a déclaré la guerre à l’Europe”. Permito-me, porque a questão me preocupa e andamos demasiado distraídos com as coisas do COVID, do futebol e das eleições, traduzir um trecho do que lá vai escrito:
“E lamentamos que permaneçam, na opinião teoricamente esclarecida, tantos irresponsáveis que não vejam uma espiral potencial, que levou a aceitar a anexação da Crimeia, para evitar a da Ucrânia, depois a invasão da Ucrânia para impedir a dos Balcãs, depois a subjugação dos Balcãs para evitar a finlandização dos Estados Bálticos, a neutralização da Polónia, colocando-a sob tutela dos grandes e antigos países da Europa Ocidental, que tudo isto é o mesmo que começou, em 1938, em Munique.
Putin declarou guerra à Europa, essa é a verdade.
Uma guerra fria, sem qualquer dúvida.
Uma guerra suspensa, que vê uma cortina de ferro a descer, por enquanto, na linha de frente ucraniana.
Mas, mesmo assim, uma guerra.
Uma guerra que [muitas fontes russas altamente colocadas] já não hesitam em dizer ser uma guerra.”
Uma “drôle de guerre”, como a acontecida nos idos de 1939/40 na frente germano/francesa. Acrescento eu.
6. Entrar no mundo político de Putin, é entrar num melodrama pejado de misticismo onde prevalecem visões escatológicas grandiosas. Um mundo que prevê uma espécie de distopia montada num futuro pós-história, onde o eslavismo cria uma Euroásia autocrática, que vai de Lisboa a Vladivostok.
O grande inimigo do ocidente, o grande inimigo da União Europeia, e do estado de direito proporcionado pela democracia liberal, mora aqui ao lado. Estamos constantemente a nos esquecermos disso.
Vladimir Putin é a ponta da lança da velha Rússia Imperial. Construiu um regime onde, tal qual no czarismo, a Igreja Ortodoxa desempenha um papel importantíssimo. Se somarmos a isto a homofobia, os tiques fascizantes, a perseguição aos opositores, o cercear do direito à manifestação e à indignação, o controlo da imprensa, o assassinato de opositores, temos um regime de quase extrema-direita.
7. Pergunta: quem é que me consegue explicar o fascínio que alguns comunistas têm por esta figura sinistra?
8. Sou mesmo lento. Só agora, ao fim de uma data de tempo, é que percebi que a Catarina Martins pronunciou mal “papa Francisco”. O que ela queria dizer era “papá Francisco… Louçã”.
9. Votei ontem. Considero que, se todos os eleitores se tivessem inscrito no Voto Antecipado, ficariam com duas hipóteses para poder votar. Votei ontem, após ter feito teste na 6.ª feira e ter recebido resultado negativo. E fi-lo assim porque, mesmo que agora apanhe o bicho, já tenho o meu dever cumprido.