Uma previsão, um agradecimento e uma despedida
Uma previsão
Para as próximas eleições.
PS e PSD: ambos acima dos 32%, em prático empate parlamentar, talvez com vantagem do PSD. O partido de Governo não será determinado em função de qual obtém mais votos, mas em função de qual dos eixos – Esquerda ou Direita – é mais sufragado, e de como se entendem entre si. Não está excluído um Governo do PS apoiado pelo PSD, ou um governo do PSD apoiado pelo PS. Não só por avaria da Geringonça, mas também para manter Chega à margem. O regime presidencializa-se. Marcelo emancipa-se definitivamente dos partidos, da ideologia, e do processo democrático, e convence-se de que é o superior intérprete do Povo. Ninguém à sua volta, ou na televisão, lhe recorda que não tem uma coroa na cabeça. O Governo dura menos que o seu mandato.
Iniciativa Liberal: melhor do que as expectativas, já de si auspiciosas. O domínio da agenda e da comunicação são bons barómetros do sucesso eleitoral. A IL trouxe a TAP, o financiamento dos serviços públicos, a função social do lucro e a decadência económica de Portugal para o eixo da campanha. Acima de 6%.
PCP: Estagnado e empedernido, perdeu a simpatia da figura de Jerónimo de Sousa. Não porque Jerónimo se tenha tornado menos simpático, mas pelo seu desgaste ter evidenciado que o processo de sucessão, no partido, não se distingue com clareza do praticado no Vaticano. Reduzido ao irredutível. Perto dos 5%.
Chega: A superficialidade de programa, a indigência de segundas linhas, e a carestia de desempenho parlamentar (em pandemia e não só) fazem estragos. Uma certa aclimatação a André Ventura torna-o também mais inofensivo e, paradoxalmente, menos credível e aliciante para o protesto. Atrás da Iniciativa Liberal.
CDS-PP: Melhor do que se adivinha, ainda que o que se adivinha seja infinitesimal. O que falta a Chicão em gravitas e sofisticação, sobra-lhe em instinto. Agarrou-se ao mundo rural, aos valores familiares, e à credibilidade que resta ao CDS, que é a de ter ministros e tribunos que se apresentem (e cujos nomes não usam ainda aumentativo, estilo Ribeirão e Castro ou Telmão Correia). Pouco acima dos 2%. Cada voto leva sangue do Chega debaixo das unhas.
Livre: Aposta para surpresa eleitoral. Rui Tavares ergue-se das cinzas de Joacine, e segue com um discurso de Esquerda sério, arejado e bem articulado. A empreitada tem um certo ar de trabalho de grupo feito integralmente pelo melhor aluno, rapaz muito aplicado e com encanto junto das velhinhas. Tavares continua delirantemente cândido, com aquele ar de senador de condomínio nas Avenidas Novas. Mas as fraquezas devem-se à inocência, e não à má-fé, o que representa já um notável progresso face à Esquerda mais consolidada. Promete agradar às elites urbanas descontentes com o PS, ou a quem apeteça tocar no vespeiro com vara comprida. Papa Francisco Louçã que se cuide: há um novo Bispo no Episcopado. E vai arregimentar cerca de 3% dos fiéis.
Bloco de Esquerda: O voto útil no PS, o cansaço da mensagem e o naufrágio da Geringonça prometem mínimos históricos. Talvez até o momento CDS-PP do Bloco, com deserção para PS, Livre e PAN. Pode acordar da noite eleitoral com mais conselheiros de Estado e cronistas do Expresso do que deputados. Abaixo dos 5%.
PAN: Entre o descrédito da líder, o assalto ecológico do Livre, e uma certa indigência programática, pode acabar reduzido ao voto fanático de quem escolhe a roupa a combinar com o pullover do cachorro. Em Portugal são alguns. Quase 2%.
Um agradecimento e uma despedida
Esta é a última das minhas crónicas para o Diário, pelo menos no formato e frequência actuais. Foi uma decisão difícil, mas amadurecida.
Difícil porque foi um período muito gratificante. Foi uma honra escrever ao Domingo, e assim aceder a mais e mais atentos leitores na terra onde nasci.
Sucede que os meus compromissos vêm aumentando. E as crónicas, porque escritas fora da actividade profissional, vêm roubando tempo ao descanso e à leitura e pesquisas necessárias à sua preparação, fazendo por vezes perigar a sua própria qualidade.
Sinto, por outro lado, que o estilo e conteúdo nem sempre se adequou ao leitor madeirense. O facto de viver fora da Região há mais de 15 anos contribui decerto para esta dissociação, que por vezes me impede também de identificar e escolher assuntos mais queridos a quem vive na ilha.
Mas este é sobretudo um momento de gratidão.
Pela lisura e cordialidade com que o Diário sempre me tratou, e pela liberdade com que sempre escrevi. Sabendo que arranhei, aqui e ali, interesses incómodos, nunca recebi reparo ou edição. Posso não ter comunicado tão bem como gostaria, mas o Diário deu-me todas as condições para o fazer. Tem por isso todo o meu reconhecimento. Reconhecimento que se estende aos seus profissionais, e sobretudo ao Ricardo Miguel Oliveira, a quem devo a oportunidade deste espaço.
Não é fácil liderar um órgão de comunicação social, menos ainda neste tempo em que todos julgam no direito de ter notícias de graça. Mas no Diário encontrei sempre as qualidades que fizeram dele o jornal de referência na RAM: integridade, independência e aposta. Obrigado.
Justificam-se algumas notas sobre o ofício.
A democracia vive, a meu ver, uma crise de processo, que afecta os mecanismos de discurso e opinião pública. As regras que me impus neste espaço foram, por isso, processuais.
A primeira, de independência no juízo, obrigava-me a evitar conflitos de interesse, e a declará-los quando existissem. A segunda, de verdade factual, implicava a consulta e citação de fontes credíveis, e, quando possível, o seu confronto com outras. A terceira, de respeito pelos leitores, vinculava-me a um módico de originalidade: se alguém já disse o que gostava de ter dito, seria de bom tom escrever sobre outra coisa. Encaixei algures um limite de decência, que renunciava à injustiça e à crueldade, mesmo quando se apresentaram sob o tentador disfarce do humor.
A decência serve um propósito de impermeabilização do conteúdo e imunidade à pressão. Quem escreve com decência não tem por que se desculpar, nem por que se arrepender – excepto, naturalmente, quando erra ou se excede. Estes anos de opinião trouxeram dissabores, bocas e afastamentos, próprios de uma sociedade pequena e atravessada por lealdades complexas e por vezes contraditórias – a família, os amigos, o trabalho, a política, a vida associativa. Cumpre por isso relativizar. Tanto rufias como aduladores têm a sua circunstância. O que não significa que se devam sentar connosco à mesa de trabalho. Os romanos diziam que a “águia não caça moscas”. E de facto não há como escrever liberto de constrangimentos deprimentes, tantas vezes embalados, com inimizade, pela nossa própria cabeça.
Os constrangimentos têm a sua razão. Na Madeira ainda se estranha que alguém escreva sem aliança ou interesse ulterior. A opinião pública não se coloca ao serviço de ideias, mas de grupos. Daí que os cronistas da imprensa regional correspondam, na prática, a militantes de partidos, e essa seja a expectativa do leitor. É natural. As pessoas precisam de estereótipos.
A escrita engajada é porém inimiga da boa escrita, e até do bom pensamento. Quando se escreve bem, as palavras seguem rente à realidade. E a realidade é fugidia e transitória. O texto pode acompanhá-la, mas só muito provisoriamente, com a fragilidade própria da delicadeza e a parcialidade própria da subjectividade. A verdade, a liberdade, a até a beleza obrigam a que a gente se mexa, e despreze dogmas e certezas. Sobretudo os ideológicos. Se nos conseguem catalogar sem reserva, é porque estamos cativos de uma coisa qualquer. Como um fotógrafo que dispara sempre do mesmo sítio, à mesma hora, podemos apanhar uma luz correcta, mas nunca um pôr do sol. A inequívoca abertura política da Madeira precisa, para ser completa, de um certo desprendimento civil. Parte desse desprendimento faz-se de escrever – e deixar escrever – porque sim.
Uma última palavra de reconhecimento ao leitor mais atento, que se tenha deixado enredar na trágica condição de cúmplice destes exercícios semanais: a atenção é a moeda da generosidade. Sigo enriquecido e embevecido pela sua.
Vemo-nos por aí.