Crónicas

O último do ano; o primeiro do ano

Era nova demais para saber que não seria esse 31 de Dezembro de 1989 a marcar-me, mas todos os outros no sítio de sempre

Lá por cima as coisas dividiam-se assim, entre o último e o primeiro dia do ano, sem jantar de gala ou roupa de festa, a não ser um casaco quente para ir ver o fogo a casa da minha tia Alice. E não é que ache mal que se queira receber o ano novo em grande, tivesse eu 17 anos e faria a mesma figura, de saltos e vestido de lantejoulas, mais laca para aguentar o penteado. Não calhou, fui nascer no Laranjal num tempo de pouco dinheiro e muito rigor nos costumes das mulheres.

De festas só o que contavam as outras no intervalo das aulas, quando os bailes nos hotéis ditavam a moda. Eu, na verdade, nem sabia bem o que era um réveillon e a primeira vez que vi o fogo-de-artifício longe do quintal da casa da minha tia tinha 18 anos e fiquei impressionada. Era nova demais para saber que não seria esse 31 de Dezembro de 1989 a marcar-me, mas todos os outros no sítio de sempre, com as pessoas com quem cresci.

E não preciso sequer de um esforço de memória, sei de cor como era. Eu chegava cedo, via televisão, comia aperitivos e fazia companhia à Mariazinha, a irmã do meu tio Humberto, uma senhora bondosa e doce que, se fosse possível, teria adoptado como avó. Lembro-me de que a minha tia Alice gostava de receber, pelo menos naquele dia não faltava nada na mesa e, pelas oito horas, já havia galinha a cozer para a canja e para aquelas sandes.

Havia pires com quadradinhos de queijo, azeitonas, doces, Brisa Maracujá e Brisa Laranja de fartura e uma garrafa de espumante para brindar o ano novo, já depois daqueles beijos e abraços na varanda. Todos os que contavam estavam lá para desejar o melhor para o ano que entrava, mas a nossa vida acabava por ser o costume, mudava pouco. Eu, pelo menos, tinha a impressão que, por mais voltas que desse, estaria ali para brindar, ouvir as piadas do meu pai e do meu tio, enquanto queimava o céu da boca com a canja e a televisão passava um espectáculo das Folies Bergère.

E, depois, antes da uma da manhã, dava o braço à minha mãe e descíamos o caminho, que era hora de dormir e havia ainda o almoço do primeiro do ano. Lembro-me que a minha mãe caprichava, fazia salada de frutas para a sobremesa, havia bolo e gelatina e que, logo a seguir, corríamos para o sofá para ver o circo de Monte Carlo, que era, a par dos concertos de música clássica, das poucas vezes em que o meu pai não adormecia ruidosamente em frente à televisão.

O primeiro do ano era também o dia em que a minha mãe se começava a impacientar, que o presépio e a árvore de Natal não iam durar muito mais e a Festa estava prestes a ser arrumada em caixas de sapatos para passar mais um ano esquecida dentro do armário. As nossas vidas estavam prestes a ser como antes, com rotinas, calmas e sossegadas como era o Laranjal daquele tempo. Eu achava muito aborrecido, agora tenho tantas saudades.