As 12 Passas do Kremlin
Passou-se 2021. Tipicamente, em casas portuguesas, o último/primeiro ritual do ano é o de comer as 12 passas ao som de cada badalada do relógio dos avós enquanto se pedem desejos para a nova etapa da vida prestes a se iniciar. No meu íntimo, gosto de acreditar que esta tradição não se ficou apenas por Portugal, Espanha e França, mas que ultrapassou os limites da União Europeia. Imagine-se, por exemplo, se esta tradição tivesse chegado ao Kremlin e a Putin, quais seriam os seus desejos para as 12 passas? É difícil acreditar que seriam algo diferentes do que a obtenção do poder totalitário nos 14 estados restantes em que se desfez a antiga União Soviética. Certamente que, perante a vontade do “neo-czar”, até o relógio se vergaria e daria duas badaladas extra.
Contrariamente a alguns dos que participam na tradição das passas, Putin tem a força de vontade, a iniciativa e os meios para cumprir os seus objetivos do ano novo. Estamos apenas em janeiro e já dois dos estados ex-soviéticos se encontram bem dentro do alcance das mãos do Kremlin: o Cazaquistão e a Ucrânia. De igual maneira, nem sabemos bem se um terceiro desejo já não se encontra cumprido integralmente na Bielorrússia tendo em conta os eventos do ano passado e a relação entre Lukashenko e Putin. Surge, portanto, a questão: quando e onde se encontrará a rocha que a onda russa não conseguirá perfurar? Ninguém o sabe e cada vez mais parece que qualquer força unida ocidental, seja a NATO em termos militares, seja a União Europeia em termos políticos, deixou de representar algum tipo de dissuasão real para as forças do Leste. No fundo, como já é costume, viramo-nos para a aplicação infinita de sanções que raras vezes dão em alguma coisa simplesmente porque ainda não foram pensadas respostas eficazes.
No geral, observou-se um certo esquecimento do problema do expansionismo russo tanto no discurso público como no discurso político à escala europeia visto que só agora nos manifestamos (minimamente) preocupados com ele, apesar de a sua ideologia já existir há mais tempo. Desde pelo menos 2014, ano em que a República Federal Russa excisou a península da Crimeia da Ucrânia e a anexou, que as intenções imperialistas da Rússia são conhecidas. Contudo, o que parece é que nada se aprendeu desse episódio negro da história europeia. Só agora, quando Jens Stoltenberg, secretário da NATO, avisa para o risco de conflito armado na Europa e para o facto de que uma possível invasão possa estar a ser preparada é que nos relembramos que este foi um problema que nunca foi resolvido, ficando a marinar desde 2014. Desde então, Putin continuou a desenvolver esforços no sentido de alargar o seu poder enquanto que os países apelidados de culturalmente ocidentais andaram a mergulhar nas suas próprias controvérsias e a criar divisões desnecessárias entre si. O resultado que vemos agora é uma União Europeia desunida entre esquerdas e direitas políticas e uma Rússia com ambições imperiais que não perde tempo com debates.
Como referi, apenas é 14 de janeiro e já há avisos de conflito armado entre duas potências, a uma das quais Portugal pertence. Viramos a página de 2021 e já 2022 nos sorri com um sorriso medonho, a lembrar que, de facto, a humanidade tem um problema em aprender com os erros do passado. Mas, tal como desde o romper da pandemia, o importante é manter sempre a esperança, nem que seja só para fazer de conta.