Julgamento dos atentados de Paris "aguardado pelas vítimas" mas vai reavivar traumas
O processo que começa hoje no Palácio de Justiça de Paris é "muito aguardado" pelas vítimas, segundo advogados ouvidos pela agência Lusa, mas pode também ter um impacto negativo nas pessoas afetadas pelos atentados terroristas na capital francesa.
"Este processo é muito aguardado pelas vítimas. Foram seis longos anos de espera, o que é muito. Este processo vai permitir perceber melhor os eventos daquela noite, que tiraram a vida aos familiares dos meus clientes ou os transtornaram profundamente, alguns de forma irremediável", afirmou Samia Maktouf, advogada de cerca de 40 vítimas dos atentados terroristas em Paris e seus familiares, em declarações à Lusa.
Samia Maktouf é uma das advogadas mais conhecidas em França na defesa de vítimas de terrorismo, tendo já defendido as vítimas do atentado terrorista a uma escola judia em março de 2012, em Toulouse. Para esta penalista, o início do processo é um dos momentos mais difíceis para quem procura justiça neste tipo de casos.
"Quanto mais a data do início do processo se aproxima, mais as vítimas que eu represento se sentem mal. É um momento extremamente difícil. As pessoas estão apreensivas, é doloroso, há raiva, muitos sentimentos que se misturam. Quanto mais se aproxima a abertura deste processo, mais essa dor é revisitada e o trauma volta à superfície", declarou.
Estes sentimentos são confirmados por Philippe Pirard, coordenador da resposta aos acidentes, catástrofes e atentados no organismo público Santé Publique France, equivalente à Direção Geral de Saúde em Portugal.
"O processo pode permitir a algumas das vítimas compreender o que se passou. Noutros casos pode reavivar os sintomas e perturbações a que ficaram sujeitos após terem sido expostos a estes atentados", explicou o médico em respostas enviadas à Lusa.
Cerca de um ano após os atentados e novamente no final de 2020, o serviço de Philippe Pirard levou a cabo inquéritos com mais de 500 vítimas e cerca de 900 profissionais como polícias ou bombeiros que intervieram após os ataques do 13 de novembro.
Este estudo visou compreender "o impacto psicológico" dos atentados em todos que vivenciaram os ataques, tendo demonstrado que pelo menos 52% das vítimas diretas apresentavam um quadro de stress pós-traumático.
"Entre os familiares das vítimas mortais, cerca de 50% apresentavam um quadro similar e cerca de 25% das testemunhas também. Quanto aos profissionais que intervieram naquela noite, 9,5% dos polícias apresentam a mesma síndrome", indicou o médico.
A síndrome do stress pós-traumático é uma patologia crónica que aparece um mês após a vivência de um evento traumático e caracteriza-se por reviver o acontecimento através de pesadelos ou flash-back, perturbações de humor, desenvolvimento de estados neurovegetativos intensos como hipervigilância ou dificuldades de concentração.
Segundo Pilard, estes sintomas são muitas vezes acompanhados por doenças graves como adições ou depressão.
Para quem espera que este processo traga esclarecimentos a nível do que se passou naquela noite ou a motivação dos terroristas, Samia Maktouf não antevê qualquer avanço, mesmo se na sala de audiências estará Salah Abdeslam, o único terrorista que participou ativamente no atentado e sobreviveu.
"Nós somos realistas, eu preparei os meus clientes para que Abdeslam não diga nada e se mantenha em silêncio. Ou talvez, se intervier, será para inocentar os seus amigos", indicou.
Mais do que um esclarecimento cabal, este processo vai trazer paz para algumas das vítimas, mostrando todo o processo dos atentados, desde a sua preparação até ao julgamento.
"Para ser muito honesta, mesmo sendo uma otimista, não espero quaisquer esclarecimentos ou revelações importantes. Tudo o que quero é que as vítimas fiquem em paz. Esta paz não pode vir sem haver respostas, sem saber o que se passou e sem compreensão das circunstâncias que lhe roubaram os seus entes queridos", explicou.
Das cerca de 40 vítimas que representa, entre elas pessoas que estavam no Stade de France, Bataclan e também nos cafés atingidos no 11º bairro, apenas cerca de cinco clientes de Samia Maktouf vão falar na tribuna sobre o que viveram naquela noite. A advogada espera que a justiça vá para lá dos 20 acusados.
"O apoio não está à altura dos danos causados a estas pessoas. A França e a administração francesa não apoiaram estas pessoas como elas precisavam. Estas vítimas foram visadas, porque o alvo era a França, mas elas não têm qualquer apoio", defendeu.
Todas as pessoas que figuram na lista da Segurança Social francesa como vítimas de terrorismo têm possibilidade de ser acompanhadas nas unidades de traumatismo psiquiátrico, podendo avançar depois para um tratamento coberto a 100% pelas autoridades durante dois anos.
Em 2019, face aos sucessivos ataques em França, foram abertas mais 10 unidades de atendimento a vítimas deste tipo de traumatismo.
No entanto, o inquérito liderado por Philippe Pirard mostrou que um ano após o atentado, muitas vítimas não tinham procurado ajuda médica. Os dois inquéritos serviram também para informar as vítimas de como procurar ajuda.
"Certas pessoas podem não ter sentido necessidade de procurar logo ajuda após os atentados, mas podem vir a sentir meses mais tarde", indicou o médico.
Os dois estudos do organismo liderado por Philippe Pirard vão ser apresentados na audiência do julgamento, de modo a demonstrar o impacto do atentado e as próximas etapas na investigação deste tipo de traumas. O processo dos atentados de 13 de novembro vai durar pelo menos oito meses, devendo o veredicto ser conhecido em maio de 2022.