Navegar (é preciso)
FOTOGRAMAS
Entre os anos de 2015 e 2018, ouvi inúmeros relatos de portugueses no Brasil ou de seus descendentes sobre os seus percursos migratórios, memórias da terra de origem, impacto e vivências na terra de chegada, aquela onde, não sem dificuldades, escolheram viver. Nesse período pesquisava fotografias de algum modo associadas a esse fenómeno migratório em particular. O recorte temporal? Desde que houvesse vestígios das mesmas nos arquivos, albúns e “baús” dos meus vários interlocutores – a mais remota que consegui foi um retrato de finais do século XIX – até à década de 1970. Escolhi então a década de 1970 porque me interessavam sobretudo as imagens que foram objeto de uma correspondência postal, as imagens postas em circulação e que serviram de meios de comunicação e de encenação das vivências de lá com os entes queridos cá. A partir da década de 1970, com a maior generalização ou acessibilidade das viagens de avião, a carta e a fotografia perderam em muitos casos a sua exclusividade medial de partilha dessas experiências. Ou seja, essas pessoas tiveram mais oportunidades, a partir de então, de voltar (simplesmente, ou com uma maior regularidade) às suas terras de origem em Portugal, e de conviver diretamente com os seus familiares e amigos.
O momento da ida, a viagem correspondente a uma longa viagem de navio, foi algo a que nessas tantas conversas aludiram, de formas diversas e em contextos muito distintos, muitas das pessoas com quem então conversei. Rito de passagem, momento simbólico de rutura com uma vida passada, ou marco narrativo inaugural no seio de um dispositivo discursivo — que instiga, mais ou menos, ao relato de uma história de um percurso migratório —, a viagem de navio é associada a uma dupla provação individual, física e psicológica. Esta provação é antecedida de um conjunto de ações, preparativos e emoções ligados à decisão de partir, como a compra da passagem (ou mesmo a ida clandestina, infiltrada...), os trâmites burocráticos (como obtenção de carta de chamada e documentação necessária), as despedidas desses mesmos amigos e familiares. Embora estes sejam episódios cuja importância é destacada nos relatos, raramente pareceram ser propícios à produção de fotografias por parte dos que viajaram (muitas vezes pela primeira vez).
Neste texto que inaugura uma série de situações fotográficas mais ou menos associadas à emigração transatlântica – fenómeno tão estruturante da sociedade portuguesa dos séculos XIX, XX (e, com contornos distintos, também do XXI) –, nomeadamente a madeirense, reproduz-se imagens de navios. Nesses relatos escutados em que, como sugeria, a própria viagem foi frequentemente descrita como um momento de enorme confronto com o desconhecido e o abissal, são os próprios nomes das embarcações que adquiriram um caráter quase que mítico, como se se tratasse de uma entidade personificada: Hilary, Giovana C, North King, Vera Cruz...
Os das imagens aqui reproduzidas de colossos estacionados na baía do Funchal fazem-nos também pensar na substância por detrás dos seus nomes e das vidas daqui levadas por mares que abriam fronteiras físicas mas sobretudo, mas também inspiraram temor e terror: Henny Woermann, Caronia, Amazon...
Sobre essas pessoas em trânsito e as imagens que colocaram em trânsito, falaremos muito fragmentariamente ao longo das próximas semanas.
Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.