A pose dos homens infames
FOTOGRAMAS
A 23 de março de 1886, um grupo de seis homens posou no estúdio da Photographia Vicente para tirar um retato. A pose do conjunto é divertida, algo jocosa, quer na eventual pretensão irónica de uma solenidade, quer na assumida nonchalance “descomposta” do sujeito sentado no chão, que desse modo quase contrasta com a maior sobriedade do homem do chapéu de coco. Baseando-se no livro do fotógrafo e no envelope onde originalmente se guardou o negativo, as pesquisas levadas a cabo sobre a imagem informam tratar-se de um grupo de nacionalidade inglesa que terá sido levado ao estúdio por um indivíduo chamado Francisco, anotando-se ainda entre parêntesis “Bombite” ou “Bombito” e rua das Medinas. A mesma pesquisa avança a possibilidade de “Bombito(e)” referir-se à prática do bombote a partir do inglês “bumboat”, associado às vendas ambulantes e prestação de outros serviços na baía do Funchal, através de uma embarcação a remos que ia ao encontro dos navios que aí aportavam. O tal Francisco seria o dito bomboteiro e organizador da sessão fotográfica. Já a referência à rua das Medinas estaria eventualmente associada às casas de tolerância, (ou bordéis), deste modo designadas por a prostituição feminina então não ser legal mas tolerada pelo Estado, e sujeita a regulamentos e inspeções sanitárias.
Num artigo amplamento documentado em fontes e que data de 2015, “Corpo(s) Público(s): notas sobre a prostituição (feminina) na cidade do Funchal”, Graça Alves – professora, investigadora e desde 2020 Diretora dos Serviços de Museus e Centros Culturais –, afirma precisamente que “ao longo do século XVIII, com a cidade do Funchal cada vez mais aberta ao mundo, a prostituição aumenta. Há, então, algum cuidado na delimitação das ruas públicas, sempre muito concorridas, numa cidade muito frequentada por marinheiros. Não sendo exclusiva da cidade, era, porém, na baixa, que mais prostitutas se encontravam, sobretudo nas ruas «da área do calhau».”
Aí, sublinha ainda a necessidade do Estado oitocentista de disciplinar a prática das prostitutas, de as quantificar e inspecionar, de “limitar a sua movimentação nas ruas da cidade”, obrigando-as a matricular-se. E refere-se à ténue linha “que separa o condenável do tolerável, sobretudo porque muitas práticas, onde se inclui a prostituição, eram apenas condenadas quando ganhavam visibilidade. A tolerância social e a própria igreja – cujo papel era extremamente importante na sociedade – acabavam por «fechar os olhos» para um «pecado» considerado «necessário» para a sociedade patriarcal e para o ideal de família.”
Desconheço se no imenso espólio de imagens provenientes das casas fotográficas comerciais madeirenses existem declaradamente retratos em estúdio de prostitutas. Mas desconfio que não, obviamente por a prostituição não constituir prática que merecesse uma visibilidade ao nível do “fazer parecer” do estúdio fotográfico. Merecia-a, contudo, enquanto prática de controlo para o poder, e nesse sentido é sintomático que a pesquisa de Graça Alves tenha precisamente identificado fotos de identificação de prostitutas nos livros de matrículas que regulamentam a profissão na região – embora a autora assinale que muitos desses retratos desapareceram, tendo “sido descolados ou cortados” (talvez, precisamente, quando saíram de uma esfera apenas estritamente regulamentar?).
O filósofo francês Michel Foucault assinala num curto texto intitulado “A vida dos homens infames” – provavelmente inspirado, até por contraste, nas personagens intrépidas de História Universal da Infâmia do escritor Jorge Luís Borges –, que “a partir do século XVII, o Ocidente viu nascer toda uma «fábula» da vida obscura” nascendo uma “arte da linguagem” que por parte de diversos poderes visa “fazer aparecer o que não aparece”, e que “ela permanece o discurso da «infâmia»: cabe a ela dizer o mais indizível – o pior, o mais secreto, o mais intolerável, o descarado”. Uma tentativa pois de pôr o obsceno (o que até então estava em fora de cena) em cena para melhor o domesticar.
A infâmia, seja lá o que isso é, reside assim numa tensão entre invisibilidade tácita e visibilidade restrita, esta última tornando-se expressiva quando aquela se torna objeto de controlo através discurso e/ou imagem por parte do poder.
Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.