Aberrações à conta das eleições
Há quem faça intervalo no Escrutínio, para legitimar a suspensão da democracia
As aberrações decorrentes de mais uma campanha autárquica avolumam-se, contribuindo para a crescente convicção de que quem faz leis, define posturas, aplica penas e programa alinhamentos parou perigosamente no tempo. São muitos os que continuam a tratar o eleitor como ser pouco dotado de saber, fortemente influenciável, potencialmente corrupto e incapaz de distinguir espertezas saloias de inteligência requintada. É por isso que os doutos decisores mantêm expedientes anacrónicos e repetem práticas inconcebíveis, que atentam contra o bom senso, de que é exemplo esta enormidade: “Os órgãos de comunicação social que integrem candidatos ao acto eleitoral como colaboradores regulares, em espaço de opinião, na qualidade de comentadores,
analistas, colunistas ou através de outra forma de colaboração equivalente, devem suspender essa participação e colaboração durante o período da campanha eleitoral e
até ao encerramento da votação”. Uma regra absurda decretada pelos que gostam que se faça intervalo no jornalismo e que gera atropelos editoriais, que limita a liberdade de expressão e que na prática convida os colunistas que não são candidatos e mandatários a fazerem campanhas descaradas pelos seus.
Mas há outros exemplos que motivam indignação: haver mais eleitores inscritos do que residentes, o que gera distorções na taxa de abstenção real; termos 12 horas para votar nas eleições do próximo domingo, sem que tal continue a não ser obrigatório, nem facilitado pelos meios electrónicos; estarmos obrigados a esperar que as urnas fechem nos Açores para libertarmos resultados eleitorais, - será que o legislador acha mesmo que o eleitor do Corvo iria esperar pelo resultado das Achadas da Cruz para decidir o seu voto? - o que leva a que, durante uma hora de aparente impasse, quem controla as Câmaras e Juntas de apuramento rápido na Madeira possa brilhar a seu belo prazer em caso de vitória.
É por causa da alegada igualdade de oportunidades e de tratamento
das diversas candidaturas, querendo tratar por igual aquilo que é diferente, que se fazem debates monólogos. O debate é um confronto de ideias e não espaços cronometrados ao segundo para que cada inquirido debite prosa mais ou menos ensaiada sobre o que quer que seja, de forma séria ou apalhaçada.
À boleia das eleições que todos querem ganhar, mesmo que deitem tudo a perder, a democracia definha. Está ameaçada por aqueles que dela mais tiram proveito. E a precisar de ajuda. Quem se disponibiliza então para obrigar os infractores compulsivos - nos cartazes e nos slogans, nas promessas e nos fundos, no cimento e nos brindes - a respeitar as leis e a fazer cumprir ordens que o regulador eleitoral delibera? Quem tem tempo para questionar legisladores para as omissões ou proibições lesivas da cidadania e das liberdades? Quem não tem medo de enfrentar a delinquência organizada para exigir que os direitos sejam intocáveis e respeitados?
Duas mil famílias têm falta de habitação no Funchal, segundo diagnosticou a Rede Europeia Anti-Pobreza. Os que não têm tecto, vivem em condições miseráveis e que de forma envergonhada mendigam por qualidade de vida devem mandar flores a quem? Aos que preferem desculpar-se com os exorbitantes valores de mercado, mas que esfolam os munícipes a quem exigem milhares euros nas licenças de construção? Aos que prometeram centenas e nem dezenas ergueram? Aos que ganham fortunas sem nada fazer? Aos que passam dia e noite nas redes anti-sociais, cultivando o delírio, o negacionismo e o insulto?
Se ao menos tivessem vergonha na cara e herdado princípios inegociáveis, uns e outros com culpas nas marginalizações faziam um enorme favor à democracia. É utópico recomendar lucidez a quem se habituou mal a ter poder, mas ainda vão a tempo de desistir de ir a votos. Aleguem avaria mecânica no carro que não têm ou falta de gasolina no eléctrico acabadinho de comprar. Acenem com incompatibilidades existenciais ou dificuldades financeiras. Atirem-se ao sistema ou à vizinhança. Ficariam para a história pelo contributo desinteressado na depuração de vícios políticos, no combate à alienação e sobretudo na erradicação da incompetência.