Crónicas

Sampaio, Sousa Tavares, e o mundo que deixaram para trás

Com Sampaio, morre também uma certa ideia, institucional, da política. De obedecer à Constituição e à Lei, ou fazer o que está certo, mesmo contra os amigos e a favor dos inimigos

Jorge Sampaio

Morreu o ex-Presidente da República, em clima de unanimidade e aclamação. Vale a pena perguntar porquê. Mas com boa memória, e não com a selectiva que pula por aí.

Todas as sociedades honram os rebeldes mortos e os conformistas vivos. Sampaio, à sua maneira, foi um rebelde, ainda que sempre incensado e almofadado pela corte de Lisboa em que afinal nasceu e cresceu.

No momento crítico da sua Presidência e da sua vida, tomou a decisão acertada. Quando Durão Barroso abala para Bruxelas, segura o Governo, porque havia uma maioria parlamentar estável. Quando Santana Lopes se revela inábil, e quando se constata que a inabilidade deriva da falta de legitimidade eleitoral, dissolve.

Foi por isso muito criticado. Pela Esquerda, por não ter dissolvido logo, ou não ter ameaçado Durão com a culpa dessa crise. Pela Direita, por ter dissolvido depois, ou não ter colaborado com Santana Lopes naquele Governo combinado à pressa pelos maiorais do PSD e do CDS.

Mas Sampaio tomou a decisão de princípio. As eleições não servem para eleger Primeiros-Ministros, mas maiorias no Parlamento. As instituições não se perturbam com a instabilidade do Governo, mas com a instabilidade da maioria que o apoia.

E foram os Portugueses que lhe deram razão. Quando preferiram, por maioria absoluta, o malogrado governo de José Sócrates. Foi a eleição, e não a dissolução, que o levou ao poder.

Sampaio é pois admirado na morte porque teve em vida um momento em que só agradou a si mesmo.

O papel da política mudou entretanto. A ideologia, antes um argumento de intervenção sobre o mundo, é agora parte da construção de uma identidade pessoal, de afirmação do “eu”. As pessoas “são” de Direita ou de Esquerda, e tomam decisões de “Direita” ou de “Esquerda”, tal como determinadas pela tribo dos pares, como quem veste o mesmo fato todos os dias.

Com Sampaio, morre também uma certa ideia, institucional, da política. De obedecer à Constituição e à Lei, ou fazer o que está certo, mesmo contra os amigos e a favor dos inimigos. Uma ideia que deixa saudades.

Miguel Sousa Tavares e a coragem de existir

MST não terá muitos admiradores na Madeira. E não surpreende que, quando anunciou o fim da carreira jornalística, parte das vozes que o vaiaram fossem madeirenses. Sousa Tavares dedicava um desprezo encarniçado a Alberto João Jardim, que na sua fúria se transformava por vezes em desprezo pelos próprios madeirenses. Não ajudou a controvérsia – hilariante – em que se enfiou por ter chamado “bando de mulheres berberes” à claque feminina do Nacional.

Outras razões haveria para não o admirar. Desde logo, a insistência num jornalismo antiquado, com uma certa confusão entre facto e opinião, e em que a experiência pessoal e a crença empírica tomam o lugar dos dados e da investigação.

Mas não foi por isso Sousa Tavares foi tão criticado na despedida. Foi por gostar de caça, de touradas, e de fumar dentro de restaurantes. Foi por escrever desassombradamente, resignado com a crítica e o erro. Foi por publicar livros de grande consumo, desabrigado da sombra requintadamente literária da mãe. Foi por se importar com o ambiente, com o campo e com o território, e por isso se ter incompatibilizado com a indústria do papel e da energia, e com aquilo que chamava de “urbano-depressivos”. Foi por amar Portugal, e ver algo de positivo na liturgia patriótica dos Descobrimentos. Foi por ser do Porto, e admirar Pinto da Costa com a mesma cegueira com que desdenhava Alberto João. Foi por ter a coragem de ser ele mesmo, em paz com as fraquezas e contradições cobradas por essa ousadia. Foi por prezar a liberdade, como prezam todos os que com risco alcançaram os seus frutos.

Foi, em suma, pelas suas qualidades.

E isso é que não.

Nicki Minaj e o direito a enganar

A história é rápida.

Nicki Minaj é uma talentosa rapper americana, conhecida por uma invulgar destreza musical por 157 milhões de seguidores no Instagram, e por um rabo do tamanho de San Marino.

Esta semana, Minaj declarou nas suas redes sociais que faltaria a uma gala porque exigiam certificado de vacinação. Que Minaj não tinha, citando “porque um amigo do meu primo, de Trinidad y Tobago, levou a vacina e ficou com um testículo inchado. O rapaz ia casar e o casamento foi cancelado”.

Anthony Fauci, a Graça Freitas dos americanos, teve de a desmentir. As autoridades de Trinidad y Tobago procuraram afincadamente, mas sem sucesso, por outros testículos inchados – por causa das vacinas, entenda-se – naquelas ilhas. E Minaj, depois de tanto estrago? Foi convidada à Casa Branca, numa operação de charme para tranquilizar o público.

Minaj não é nenhuma pioneira. Cá no burgo, Cláudia Vieira e Kátia Aveiro já tinham disseminado informações falsas ou enganadoras sobre Covid-19. Faltou serem levadas a sério, ou convidadas a Belém para mandar uma mensagem aos seus seguidores.

Já chega de colo, e de tratar uma indústria como uma forma de expressão individual. As celebridades do Instagram devem ser tratadas como o que são: meios de comunicação social. E devem como tal ser responsabilizadas por exibições de ignorância, desinformação e superstição. Com multas, indemnizações, e rectificações, como sucede com os jornais e as televisões, que não por acaso estão em crise.

Liberdade de expressão? Para defender o quê? O direito a enganar 157 milhões de pessoas?