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Autárquicas, um acto de afecto ou de astúcia política?

O tempo é de interiorizar os restos de palavras, escritas na areia da nossa pequena história

Estão aí as eleições autárquicas. Paira no ar o bailado das palavras e das imagens, exibem-se cartazes gigantes com fotos de personagens de olhar generoso e frases arrojadas. Tudo dentro dos valores normais para a época. A maturidade democrática inclui, na lista, o desconto dos exageros e gabarolices com que se adjectivam os discursos e se enaltecem os concorrentes.

Para governar a cidade é preciso ter uma concepção de cidade. Mesmo que se trate duma pequena aldeia que nunca chegará a metrópole. Mas não é possível gerir a cidade hoje sem ter em conta a reflexão sobre a urbe que cada um constrói. Tendo em conta a sua história, os seus contextos geográficos, culturais, os seus novos tecidos, as mudanças que se operaram. Importa lembrar que as cidades têm alma, evolução nas populações, imigração, mobilidade, alterações demográficas, ambiente, transportes, riscos, silêncios, esquecimentos, medos, fugas. E pobres, excluídos, marginais, anónimos em excesso. Tudo isto somos nós. A tudo isto se refere a cidade que se move. Uma característica das grandes cidade e, não só, em evolução há séculos, mas que deu um salto qualitativo com a civilização do automóvel e o alargamento da rede de transportes públicos. Tudo isto provocou alterações sucessivas na concepção das cidades e na vida das populações. A cidade passou a organizar-se a partir das exigências dos transportes e não das pessoas. Os chamados “peões” perderam espaço nas grandes cidades, que privilegiaram a deslocação, de casa para o trabalho, da periferia para o centro e vice-versa, na busca dos múltiplos centros de interesse das pessoas e das famílias, que parecem passageiros em trânsito.

A mobilidade introduz alterações profundas na compreensão da vida. Antes de mais na definição do “tempo humano”, isto é, a relação da vida com a ocupação do tempo ou o tempo concebido como espaço para a vida. “Passageiros em trânsito” não têm tempo para a leitura, para o convívio, para o lazer que passa a ser apenas e quando o é, mais um número de um programa sobrecarregado. Há dimensões essenciais da felicidade humana que, para não as perder, é preciso lutar contra o bulício da cidade. O cidadão não se pode arrastar por essa voragem do “tempo sem tempo”, e oferecer às pessoas o espaço – tempo da tranquilidade e da paz.

As eleições autárquicas estão aí. Passam pelas nossas portas e janelas virtuais, discursos exaltantes que mais que nos tempos comuns nos interpelam por várias razões. Há uma construção especial de mensagens em tempo de campanha. Estão em causa pessoas, rostos, vozes, trajes e discursos que, diariamente, entram nas nossas casas e, sem nos apercebermos, tornam-se amigos ou inimigos, aliados ou adversários, simpáticos ou detestáveis. E que se não afaste a dimensão de jogo ou clubismo, camisola de amar ou repudiar, candidato a uma vitória ou derrota em que seremos envolvidos. Acresce que estes senhores se propõem ser gerentes dos nossos haveres e representantes do povo e da terra que somos. Tudo isto ganha particular ênfase em campanha eleitoral. Teoricamente, é um tempo de excelência para lançar projectos, pessoas e programas que respondam às inquietações a que a política tem por dever, dar saída. Na prática, porém, pode dar-se exactamente o contrário: o tempo, em que nada do que se diz merece ser escrito, pois existe uma espécie de cumplicidade de o pregoeiro vender muitas mentiras e o cidadão, sem escândalo especial apenas as não comprar. As coisas sérias da vida ficam para outra altura.

Não é imperioso que se bata com a porta ou a janela na cara do pregoeiro. Talvez seja útil deixá-lo esticar as cordas vocais. Mas o melhor é escolher outra altura para o tomar a sério.

A campanha para as autárquicas ainda não tinha começado oficialmente, mas já era bem visível, até nos cartazes cujas mensagens são declarações de guerra, que elas vão acentuar a tendência dominante de asfixia do pensamento. A desqualificação do adversário e o triunfo de um tom acusatório e de deslegitimação têm substituído progressivamente a argumentação racional no debate político. A radicalização em curso não resulta da afirmação de posições radicais fundadas, mas de uma incapacidade de discussão. E cada vez mais o discurso se centra na designação de um inimigo político.

É bem visível a polarização e a radicalização que atravessam hoje o espaço público, onde cada vez é mais difícil distinguir os meios de comunicação clássicos daqueles que a digitalização colocou ao dispor de toda a gente. A vida pública e política decorrem ao ritmo das grandes indignações e emoções. Governa-se fazendo apelo à adesão emocional: e serve-se a oposição cultivando o tom de indignação. E assim se progride na gritaria infecunda, em zonas perigosas de irracionalidade, de onde a política, em rigor, foi expulsa. O espaço político substituído por um campo de batalha: eis a manifestação mais visível de um mal-estar que não pode acabar bem.

O tempo é de interiorizar os restos de palavras, escritas na areia da nossa pequena história. Estamos, afinal, mesmo com camisolas diferentes, emboscados na mesma viagem. E sabemos que as ondas podem chegar-nos do outro lado do planeta. E que todos somos poucos para nas dimensões limitadas da nossa barca, nos aceitarmos e apoiarmos na complexa travessia que nos espera.

Aprendendo sempre as lições que a história nos dá e que damos à história. E acendendo a coragem da reedificação da cidade que a todos nos compete. Esta teoria não é de direita, centro ou esquerda. Verte do Evangelho com a naturalidade com que se consegue construir o Reino. É preciso fazer contas e reedificar a nossa casa sobre a rocha. A cidade está sempre em reconstrução…