Seriam 85 este sábado
O meu pai sabia que o fim estava próximo e preocupava-se com o Tonecas, o que seria dele depois. Aquele rafeiro branco e amarelo enchia-lhe o coração
Há coisa de um ano a minha vida mudou. O meu pai tinha acabado de fazer 84 anos e, no hospital, a médica disse-me que os tratamentos de quimioterapia seriam suspensos. Eu sabia que, dali em diante, o caminho era o do cancro, mas fomos tomar um café depois da consulta e falámos das notícias, do Tonecas e do que havia na fazenda para colher. Tínhamos pouco tempo já e, naquele dia, quando o deixei na paragem de autocarro, pareceu-me o mesmo de sempre.
Sorrateira, a doença minava-lhe o corpo, tirava-lhe a força para tratar da horta, para regar o jardim e acabar a casota de madeira que começara a construir para o cão. O meu pai sabia que o fim estava próximo e preocupava-se com o Tonecas, o que seria dele depois. Aquele rafeiro branco e amarelo enchia-lhe o coração e permitia-lhe liberdades como ver o Preço Certo deitado no sofá da sala.
Eu acreditei que teria maneira de me preparar, teria mais tempo, uns meses de bónus, mas o cancro não esperou. Em duas semanas estava à porta do hospital, desorientada, sem saber como cuidar daquele senhor velhinho e frágil que o serviço de urgências me devolveu depois de um dia e uma noite. O caso era grave, não me podia iludir mais, a médica não se tinha enganado. Fora a minha esperança, o meu optimismo, a ingenuidade de acreditar em impossíveis e o meu pai alto e orgulhoso a fazer de conta de que era o mesmo.
Não era. Tinha 84 anos, estava doente, acabara de sair do hospital e mantinha-se ligado à vida por pouco, mas o caminho não estava completo. E o que faltava percorrer não podia fazer sozinho. Lembro-me de ter chorado às escondidas e da vontade de fugir antes de decidir que ficaria até ao fim, o tempo que fosse necessário. Teríamos os dias, os minutos possíveis, cada segundo seria ganho, uma vitória.
E teríamos na velha casa do Laranjal, sem a via sacra de exames e hospitais, para aproveitar o sol no quintal, o almoço e a tarde, os pequenos nadas que, nesses últimos três meses, pareceram sempre tão grandes. Não sei onde fui buscar a força, nem como me organizei em função de horários de medicamentos, de receitas da farmácia, de lista de compras sem falhas, de almoços e lanches e consultas domiciliárias. E como fui feliz, muito feliz por cuidar, por dar carinho e amor.
Poucas vezes a minha vida foi como deve ser, poucas vezes fiz o que era suposto, como devia e quando devia, mas sei que não falhei ao meu pai e isso descansa-me, por muito que me custe olhar o calendário e perceber que, se a história fosse outra, teria feito 85 anos este sábado.