Crónicas

O bom, o mau e a golpada

Na Madeira, estima-se que o mercado de cruzeiros tenha um valor anual superior a 50 milhões de euros

Ao terceiro dia o ferry ressuscitou. A repetida ressurreição da embarcação é um monumento à inesgotável imaginação de alguns políticos da nossa praça. O barco já foi cartaz eleitoral, trampolim para saltos de mão dada com o primeiro-ministro em Machico e argamassa para a construção de uma rampa no Porto de Lisboa. Ao ferry, faltava-lhe, apenas, uma última metamorfose. A derradeira transformação. Boia de salvação para congresso partidário, desenhada para manter à tona políticos em perigo de naufrágio. Longe vão os dias em que se prometiam murros pelo barco, em que se defendiam escalas no Porto Santo. Agora, tudo se reduz a uma tímida lembrança, perdida no meio de um discurso. Ferry – quem te viu e quem te vê.

O bom: O regresso dos cruzeiros

Há paisagens que nos ficam gravadas como se fossem um castelo de cartas. Fragilmente assentes em pormenores cuja importância apenas se revela na sua ausência. O Porto do Funchal é exemplo disso. Ali, a paisagem desenha-se ao ritmo dos barcos. Dos maiores ao mais pequenos, dos iates aos grandes cruzeiros, dos pescadores à Marinha. Todos parte de uma hipnotizante coreografia de chegadas, partidas e tangentes, que parece pensada para ser vista de terra, como se fosse pano de fundo para o dia-a-dia da cidade. Até que veio o vírus e foram-se os barcos. À primeira vista, a questão é utilitarista. Para que serve um porto sem barcos? Depois apercebemo-nos que a falta tem valor económico. Na Madeira, estima-se que o mercado de cruzeiros tenha um valor anual superior a 50 milhões de euros. É certo que os turistas de cruzeiro colocam novos e complexos desafios ao setor. A curta estadia e os circuitos estanques em que se deslocam, são alguns deles. Apesar de tudo, é inegável que há enorme potencial na afirmação da Madeira como ponto obrigatório de escala para cruzeiros. Por isso, o regresso previsto dos cruzeiros ao Porto do Funchal é especialmente animador. Ao todo, serão 111 escalas até ao final do ano que, embora não salvem ano e meio de paragem, permitem olhar para 2022 com entusiasmo.

O mau: Crise no Afeganistão

Sentadas em casa, à espera que a morte bata à porta. Agarrados às asas de um avião, prontos a trocar a firmeza do seu chão pela morte certa. É isto o que, hoje, significa ser afegão. Não há palavras que descrevam a convivência diária com a morte. A forma como isso desclassifica homens e mulheres, como lhes retira dignidade e os reduz a números de uma operação militar falhada, é uma barbárie indizível. Vimos esta história repetida uma e outra vez. Por isso, desafia o bom-senso quem procura em Cabul um ajuste de contas com o globalismo ou quem consegue encontrar no inferno afegão uma derrota do imperialismo americano. E não se trata de justificar a intervenção americana com os direitos das mulheres. Se dúvidas havia quanto à eficácia da reconstrução americana do Afeganistão, isso ficou rapidamente esclarecido com a velocidade estonteante com que caiu o governo e a suavidade com que capitulou o exército afegão. O que não se pode é vociferar contra a intervenção americana e depois indignar-se com os efeitos da sua saída do Afeganistão. Mesmo admitindo todos os erros de duas décadas de ocupação. Tudo isto é preferível a assistirmos à desintegração de uma nação em direto, enquanto, confortavelmente sentados na poltrona, divagamos sobre o perigo do neoliberalismo imperialista.

A golpada: Alteração ao PAEL

Há arranjos parlamentares na República que envergonham qualquer um. Não se trata de matéria de opinião, de diferença ideológica, nem sequer de tática política. É, essencialmente, uma questão de descaramento absoluto. Infelizmente, o pecado não é original. Primeiro, foram as reuniões secretas sobre o financiamento partidário, depois a tentativa ignóbil de dificultar as candidaturas dos partidos mais pequenos às próximas eleições autárquicas. Agora, quis-se perdoar autarcas com processos por ilegalidades financeiras. O enredo é simples. O PAEL, um programa de apoio financeiro às autarquias, exigia, em troca do financiamento, a aplicação de um conjunto de medidas fiscais e de rigor contabilístico nas Câmaras. Quem não as aplicasse, estaria sujeito a penalizações. A artimanha parlamentar, sob a forma de alteração legislativa, queria anular essas sanções. O problema não é, necessariamente, de substância. Haverá, certamente, razões para uma revisão profunda do PAEL. O que inquieta é a forma. A proximidade entre o perdão legislativo e as eleições em que os perdoados serão candidatos. A pressa despudorada com que tudo se aprovou no último dia de votações da Assembleia da República. A coincidência partidária entre a maioria parlamentar que absolveu e os autarcas que seriam absolvidos. É aqui que a patranha se adensa. Juntaram-se os deputados do PS e do PCP para aprovar uma alteração cujos destinatários eram – imagine-se – autarcas do PS e do PCP. Não é acaso, é falta de pudor. E nisto tudo, há um denominador comum - o Partido Socialista. O grande partido do Estado, confortavelmente instalado ao centro e que muda de parceiros parlamentares em função das necessidades. As deles, raramente as nossas. Uma vez mais, valeu-nos o veto de Marcelo.