Crónicas

Notas dispersas sobre paisagem – interlúdio

Sob o impacto do calor que se fez sentir na Madeira na passada semana, as linhas que compõem o texto desta terça-feira partem ainda da visita à exposição A Paisagem nos Primórdios da Photografia Vicente, atualmente presente no Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s, para dela derivar (quase totalmente e) lançar impressões fugazes sobre a própria noção de “paisagem”.

Primeira impressão: uma fotografia é mais precisa do que um texto.

Baseio-me na descrição do avistamento do mar da ilha da Madeira, de parte da sua costa sul, em 1924, por Raúl Brandão em As Ilhas Desconhecidas, ou seja, há quase um século.

“Fundeamos e a Madeira abre-nos os braços, com a ponta do Garajau num extremo e a Ponta da Cruz no outro extremo. Adivinho as casas, que por ora são fantasmas e descem lá do alto até à praia. Agora o tom cinzento desapareceu, domina o azul e o oiro, e na minha frente o grande anfiteatro verde dos montes ergue-se como um altar até ao céu. É uma serra a pique, é uma serra voluptuosa e verde que se oferece lânguida e verde. Ao meio um grande monte entreaberto; por trás a montanha enorme e escalvada. Algumas colinas vão terminar no farol e no forte sobre um penedo destacado e corroído.”

Porventura similar à experiência de ver uma fotografia de uma vista da ilha de finais do século XIX, ler hoje a descrição de Brandão e porventura qualquer relato descritivo da paisagem da ilha de há várias décadas (ou mesmo anos), faz-nos pensar em que medida essa descrição é hoje justa, por sabermos por exemplo que o anfiteatro dos montes então avistados ser no presente seguramente menos verde do que então. Ou ainda por não sabermos ao certo (por falta de oportunidade de pesquisa, também) da existência hoje do referido farol, ainda que com mais certezas possamos afirmar que este, ao existir, não se destacará na paisagem como então se destacava, no meio de tantas outras edificações. A diferença maior da literatura para a fotografia? Ao vermos uma imagem fotográfica podemos efetivamente ver o que então ali estava – que árvores, que pedras, que casas… – e comparar essas com as que num momento podemos (ou pudemos) observar a partir de um mesmo (ou similar) ponto de vista sobre um dado território. Desse modo se contorna a dimensão “adjetivante” da descrição da paisagem na literatura e a incerteza que esta acarreta perante a concretude dos elementos que a compõem: um penedo pode ser “destacado e corroído” num texto, mas uma imagem fotográfica de então mostraria mais exatamente em que medida o é.

Segunda impressão: uma fotografia mente mais do que um texto. Esta impressão é particularmente difusa, uma vez que vem da leitura coletiva de um texto num seminário sobre Fotografia em 2015, onde o professor, ao olhar para uma bela fotografia de finais do século XIX de um prado nos Estados Unidos da América, disse algo como (e se não me falha a memória): “a grande tradição norte-americana do género «paisagem», com suas vastas planícies e horizontes a perder de fim, assenta sobre a violência, expropriação e destruição das reservas indígenas que ocupavam esse mesmo território, construindo paisagem ao mesmo tempo que oculta o território”. Então, por mais que revele ao dar-nos a certeza de uma aparente objetividade, a fotografia, enquadrada mas sem contexto (entendido aqui literalmente como o texto que a acompanha), esconde, construindo ela própria paisagem ao mesmo tempo que oculta os usos, presenças e conflitos de que um território é sempre feito. Paisagem e território em disputa, portanto, sendo a paisagem algo que se dá a uma observação, ao gesto de colocar-se de fora para criar o pitoresco do que se observa através da distância, dimensão que em grande medida enformou a paisagem enquanto elemento construído e não natural ao longo dos séculos XIX e XX. A fotografia foi assim fundamental para essa mesma construção, daí a sua forte imbricação na experiência turística de um determinado sítio que se visita mais do que se habita.

Terceira impressão: as fotografias, duplas ruínas de paisagens, ou as fotografias são as ruínas do século XX. Esta impressão veio de uma conversa com Margarida Medeiros, prolífera investigadora e autora de teses tão instigantes como Fotografia e Verdade – Uma História de Fantasmas (2011), professora universitária em Portugal na área dos Estudos Visuais e de Fotografia, que faz em 2019 com Emília Tavares a curadoria da segunda exposição temporária deste mesmo Museu, Imagens Nómadas 1860 – 1940, a qual, num dos seus três eixos temáticos, abordava sintomaticamente a imagem turística da Madeira. Ao afirmar o caráter de ruína da fotografia, já não me recordo exatamente através de que palavras, Medeiros apontava precisamente para o seu papel na construção das paisagens de outrora e de como hoje esses arquivos são uma das principais fontes para a “arqueologia” da cultura do século XX. Apontava talvez para o facto de a fotografia ter a capacidade dupla de simultaneamente documentar a ruína – aquilo que se reconhecia estar em vias de desaparecimento – e constituir ela própria uma ruína para a posteridade. Uma ruína quer por aquilo que indicia e projeta para o futuro enquanto visão e património (pense-se na fotografia da grande arquitetura modernista, por exemplo), quer pela sua matéria ou materialidade já obsoleta (o negativo, o papel, etc.). A fotografia tem nessa medida uma dimensão anacrónica, a dimensão daquilo que já não é mais.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.