Crónicas

O leste

Nem o calor que aquecia o terraço e subia pelas paredes dos quartos faziam diferença naquela luta de enfiar as linhas na agulha e puxar pontos

Quando o vento soprava quente e de leste a minha mãe transferia o posto de trabalho para debaixo da latada das pimpinelas e era lá que metia mãos ao bordado. O senhor António dava muitas vezes pressa, queria encomendas prontas para enviar para Itália e do que me lembro a minha mãe andava quase sempre em contra-relógio. Bordava de manhã, durante a tarde e à noite, com o candeeiro de mão montado em cima de um banco da cozinha e televisão ligada no telejornal.

Nem o calor que aquecia o terraço e subia pelas paredes dos quartos fazia diferença naquela luta de enfiar as linhas na agulha e puxar pontos, enquanto ditava ordens para o jantar e me mandava polir o fundo das panelas de alumínio com esfregão palha de aço. A maior parte dos dias a casa parecia ter sido atravessada por um vendaval, mas uma mulher não podia dar para tudo e a minha mãe queria muito o dinheiro dos bordados.

Queria por nos fazer falta para uns sofás novos, um móvel da televisão e para ter uma reserva fechada à chave, debaixo do papel de oferta, na primeira gaveta da cómoda. Por cima, ficava o dinheiro para pagar o supermercado, as contas e ainda os trocos amealhados a vender ovos, estrelícias, orquídeas e sapatinhos. Quando chegava a época, passavam mulheres pelas casas e contavam as flores por haste. Lembro-me do regateio que se fazia ali no quintal, a discutir o preço e o bom estado das flores.

Aqueles trocos que caíam na gaveta da cómoda davam trabalho e canseiras. A minha mãe rodava os cântaros da sombra para o sol e, no Verão, levava-nos ao terrenos dos pinheiros, que ficavam atrás da rocha, no outro lado do caminho que ia dar à Visitação. Sei que era um acordo com o meu irmão, acertos para comprar uns sapatos ou para ir acampar. E o meu irmão nunca falhava o combinado: lavava a loiça, limpava o chão e carregava sacos de terra vegetal dos pinheiros.

E com terra boa, a minha mãe podia ocupar-se com o único ‘hobby’ que lhe conheci: tratar do jardim e das flores, distrair dos bordados, da casa e até de nós. Mas isso acontecia pouca vezes. Em todos os outros dias havia trabalho, fossem de chuva ou de calor de leste e só descansava ao domingo à tarde, depois de lavar a loiça e de arrumar a sala. Era quando vestia uma roupa melhor e se juntava às minhas tias e as primas, em casa do meu avô, onde bebia café e ficava horas a tagarelar.

Na adolescência, o que diziam umas às outras, deixou-me de interessar, mas hoje lamento. Dava-me jeito saber mais das nossas histórias, ter fixado receitas de bolos, as maneiras de tratar do jardim ou ter aprendido a coser na máquina Singer que, apesar de estar há 26 anos encostada, ainda funciona. Pensei que estariam para sempre, ali, como nas conversas de domingo de há 30 anos, tal e qual como as guardo na memória: quatro mulheres de meia idade, independentes e prontas para viver no Laranjal, ainda rural do início dos anos 90.